sábado, 3 de março de 2018

357ª Nota - Se podemos repudiar alguém e contestar seus escritos como heréticos antes do veredito da Igreja




Tudo o que acabais de expor, dirá alguém ao chegar a este ponto, encontra na prática uma dificuldade gravíssima. Tendes falado de pessoas e escritos liberais, recomendando com todo o empenho que fujamos, como da peste, deles e até dos seus mais remotos vestígios de Liberalismo.
Mas, quem se atreverá, por si só, a qualificar de liberal tal pessoa ou escrito, sem considerar o veredito decisivo da Igreja docente, que os declare tais?
Eis aqui um escrúpulo, ou antes uma tolice, muito em voga de alguns anos para cá, por parte dos liberais e dos mais ou menos influenciados de Liberalismo; teoria nova na Igreja de Deus, e que temos visto com assombro perfilhada por quem nunca imagináramos pudesse cair em tais aberrações; teoria além disso tão cômoda para o diabo e seus sequazes, que apenas um bom católico os ataca ou desmascara, imediatamente os vemos acudir por ela e refugiar-se em suas trincheiras, perguntando com ares de magistral autoridade: “E quem sois vós para qualificar-me de liberal, a mim e ao meu jornal? Quem vos constituiu mestres em Israel para declarar quem é bom católico e quem não o é? É a vós que se há de pedir patente de Catolicismo?”
Esta última frase sobretudo fez fortuna, como se diz, e não há católico com vestígios de liberal que a não aproveite nos casos graves e difíceis, como seu último recurso.
Vejamos, pois, o que há a tal respeito, e se é sã a teologia que expõem os católicos liberais sobre este ponto. Ponhamos a questão em toda a sua limpidez e clareza. É a seguinte:
Para qualificar uma pessoa ou um escrito de liberal, deve aguardar-se sempre o veredito concreto, da Igreja docente sobre tal pessoa ou escrito?
RESPONDEMOS CATEGORICAMENTE QUE DE MODO NENHUM.
A ser certo este paradoxo liberal, fora indubitavelmente o meio mais eficaz para que na prática ficassem sem efeito todas as condenações da Igreja, com respeito assim a pessoa como a escritos.
A Igreja é a única que possui o supremo magistério doutrinal de direito e de fato, juris et facti, sendo a sua suprema autoridade, personificada no Papa, a única que definitivamente e sem apelação pode qualificar doutrinas em abstrato, e declarar que tais doutrinas as contém ou ensina  em concreto o livro de tal ou tal pessoa; - infalibilidade não por ficção legal, como a que se atribui a todos os tribunais supremos da terra, mas real e efetiva, como emanada da contínua assistência do Espírito Santo, e garantida pela promessa solene do Salvador; - infalibilidade que se exerce sobre o dogma e sobre o fato dogmático, e que tem portanto toda a extensão necessária para deixar perfeitamente resolvida, em última instância, qualquer questão.
Pois bem. Tudo isto se refere ao veredito último e decisivo, ao veredito solene e autorizado, ao veredito irreformável e inapelável, ao veredito que temos chamado de última instância. Mas não exclui para luz e guia dos fiéis outras decisões menos autorizadas, porém, também muito respeitáveis, que não podem desprezar-se, e que podem até obrigar em consciência o fiel cristão. São as seguintes, e suplicamos ao leitor que fixe bem a sua gradação:
1ª. A dos Bispos em suas dioceses. (...)
2ª. A dos Párocos em suas freguesias. (...)
3ª. A dos diretores de consciência. (...)
4ª. A dos simples teólogos consultados pelo fiel secular. (...)
5ª. A da simples razão humana devidamente ilustrada. Sim, senhor, até isto é lugar teológico, como se diz em teologia, quer dizer é critério científico em matéria de religião. A fé domina a razão; esta deve estar-lhe em tudo subordinada. Porém é falso que a razão nada possa por si só; é falso que a luz inferior acendida por Deus no entendimento humano não alumie nada, ainda que não alumie tanto como a luz a superior. Permite-se, pois, e até se prescreve ao fiel, discorrer sobre o que faz objeto da sua crença, tirar daí consequências, fazer aplicações, e deduzir paralelos e analogias. Assim pode o simples fiel desconfiar logo à primeira vista de uma doutrina nova que se lhe apresente, segundo o maior ou menor desacordo em que veja com outra definida. E pode, se esta desarmonia é evidente, combatê-la como má, e chamar mau ao livro que a sustenta. O que não pode é defini-la ex-cathedra; porém, tê-la para si como perversa e como tal denunciá-la aos outros para seu governo, dar a voz de alarme e disparar os primeiros tiros, isso pode fazê-lo o fiel secular; assim se tem feito e o aplaudiu sempre a Igreja. E isto não é fazer-se pastor do rebanho, nem sequer humilde zagal dele; é simplesmente servir-lhe como o cão para dar aviso com seus latidos. Oporter adlatare canes, recordou a propósito disto muito oportunamente um grande Bispo espanhol, digno dos melhores séculos da nossa história.
(...)
Subamos, porém, a uma consideração mais geral. De que serviria a regra de fé e costumes, se a cada caso particular não pudesse fazer imediata aplicação dela o simples fiel, mas devesse andar de contínuo a consultar o Papa e o Pastor diocesano?
Assim, como a regra geral de costumes é a lei, e não obstante tem cada um dentro de si uma consciência (dictamen practicum) em virtude da qual faz as aplicações concretas da dita regra geral, sem prejuízo de ser corrigido, se se extravia na sua apreciação; assim na regra geral do que se há de crer, que é a autoridade infalível da Igreja, consente esta,e há de consentir, que faça cada um, com o seu critério particular, as aplicações concretas, sem prejuízo de corrigi-lo e obrigá-lo à retratação, se porventura erra.
É frustrar a regra superior da fé,é fazê-la absurda e impossível, exigir a sua concreta e imediata aplicação pela autoridade primária em cada caso, de cada hora e de cada minuto.
Há aqui um certo jansenismo feroz e satânico, como o que havia nos discípulos do malfadado Bispo de Ypres, ao exigir para a recepção dos Santos Sacramentos disposições tais que os tornavam absolutamente impossíveis para os homens a cujo proveito foram destinados.
O rigorismo ordenacionista que aqui se invoca é tão absurdo como o rigorismo ascético que se pregava em Port-Royal, e seria ainda de piores e mais desastrosas consequências. E se não, observe-se um fenômeno.
Os mais rigoristas a este respeito são os mais endurecidos sectários da escola liberal. Como se explica esta aparente contradição? Explica-se muito claramente, recordando que nada conviria tanto ao Liberalismo como essa mordaça legal posta na boca e na pena de seus mais destemidos adversários. Seria na verdade um grande triunfo para ele chegar a conseguir que, sob pretexto de que ninguém pode falar com voz autorizada na Igreja senão o Papa e os Bispos, emudecessem de repente os De Maistre, os Valdegamas, os Veuillot, os Villoslada, os Aparisi, os Tejado, os Orli y Lara, os Nocedal, de que sempre por divina misericórdia houve e haverá gloriosos exemplares na sociedade cristã.
Isso quereria o Liberalismo, e que fosse a mesma Igreja que lhe fizesse o grande serviço de desarmar os seus mais ilustres campeões.
(Excerto do livro "O Liberalismo é Pecado", do Padre Félix Sardá y Salvany)

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