Na polêmica mundial, que tem interessado artistas e
pensadores, relativa à influência moderna na arte sacra, a Suprema Congregação
do Santo Ofício baixou a importante Instrução que esta folha publicou em seu
último número. Um dos aspectos dessa Instrução que tem sido mais discutidos em
certos meios consiste na competência da Santa Sé quanto ao assunto. Assim, é de
real interesse transcrever o comentário que a esse propósito escreveu Monsenhor
Celso Benigno Luigi Constantini (+1958), Cardeal e Consultor do Santo Oficio,
no “Osservatore Romano”.
É fora de dúvida a competência absoluta da Santa Sé em
matéria de arte sacra. Com efeito, a Igreja, por ser uma Sociedade perfeita, tem o
direito e o dever de formular leis para os seus membros. Estas não suprimem a
liberdade, mas a regulam. Servi legum sumus – dizia Cícero – ut liberi esse
possimus. As leis são para os homens o que são os trilhos para a locomotiva;
ninguém pensa que os trilhos tiram a liberdade à locomotiva.
A Congregação do Santo Ofício jamais cogitou de legislar em
matéria de arte enquanto arte. Mas, quando esta pretende entrar nas igrejas com
contrafacções sacrílegas, então cai naturalmente sob o poder da Autoridade Eclesiástica,
a quem compete salvaguardar a pureza da fé e da moral. O mesmo ocorre com a
literatura e a música, especialmente quando uma e outra se associam ao culto. O
Bem-aventurado Pio X proscreveu das igrejas a música teatral, e ninguém
considerou ilógica sua intervenção.
A Santa Igreja deixa, entretanto, ampla liberdade aos
artistas para se exprimirem da maneira que julgam mais digna e que corresponde
melhor ao seu temperamento. Toda a História o demonstra, desde os primeiros
tempos. Emile Mâle diz que Jesus Cristo, nos primeiros séculos do Cristianismo,
é representado na Grécia como um jovem imberbe, que faz lembrar a tradição
clássico-pagã. Ao passo que, nos mosaicos de Jerusalém e da Síria, Nosso Senhor
não é mais um adolescente grego, mas um semita, com a barba e os cabelos
compridos. A graça grega acrescentou-se a dignidade varonil.
A arte helênica havia representado a Virgem com a túnica e as
vestes das matronas de Antioquia e Alexandria. A arte de Jerusalém e da Síria
apresentam-na coberta com o longo véu sírio, como as jovens de Jerusalém (E.
Mâle: La fin du Paganisme en Gaule, Flammarion, 1950).
Esta liberdade de tipos, modos e técnicas levou os artistas
de todos os tempos a interpretar os mistérios cristãos não tanto conforme a
arqueologia e a etnologia, mas tendo em vista a necessidade de aproximar dos
fiéis os mistérios sagrados e favorecer-lhes a piedade a instrução.
Rafael, para pintar a Escola de Atenas e o Triunfo da
Eucaristia nas salas da Signatura, seguiu as sugestões dos humanistas e dos
teólogos, mas ninguém irá imaginar que essas sugestões tenham feito arrefecer a
inspiração de Rafael.
A Instrução define inicialmente a arte sacra: esta existe na
medida em que assegura a dignidade da casa de Deus e favorece a fé e a piedade
dos fiéis. Seu fim, claro e indiscutível, lhe especifica o caráter.
O Bem-aventurado Pio X põe-no em relevo de modo admirável,
enunciando a parte negativa da arte sacra: “nada que perturbe ou sequer diminua
a piedade e devoção dos fiéis deve entrar na igreja”.
Sua Santidade Pio XII precisa a sua finalidade na grande
Encíclica Mediator Dei, convidando os artistas a inspirar-se na religião: “resultará
assim que as artes humanas, por assim dizer vindas do céu, resplandeçam com luz
serena, elevem grandemente a civilização humana, contribuam para a glória de
Deus e a santificação das almas”. Pois assim é que as artes são verdadeiramente
conformes com a religião quando estão ao serviço, “como nobres servas, do culto
divino”.
O mesmo Soberano Pontífice Pio XII, na audiência que concedeu
no dia 8 de abril de 1952 aos artistas da IV Quadrienal Romana, voltou a falar
do conceito de arte cristã com estas palavras profundas: “Não é necessário que
expliquemos a vós — que o sentis em vós mesmos, muitas vezes como nobre
tormento — uma das características essenciais da arte, que consiste em certa
afinidade intrínseca com a religião e faz dos artistas, de algum modo, os
intérpretes das perfeições infinitas de Deus e particularmente de Sua beleza e
harmonia. A função de toda arte é, com efeito, romper o círculo estreito e
angustiante do finito, no qual está encerrado o homem, enquanto vive aqui em
baixo, e abrir uma janela ao espírito que aspira ao infinito. Resulta daí que
todo esforço — em realidade vão — que vise negar ou suprimir qualquer relação
entre religião e arte, resultaria em uma diminuição da própria arte, pois, seja
qual for a beleza artística que se queira tomar no mundo, na natureza, no
homem, para exprimi-la por meio de sons, de cores ou de um jogo de massas, não
poderá separar-se de Deus, desde que tudo o que existe está ligado a Ele por
relações essenciais. Como na vida, não há portanto na arte — quer seja
entendida como expressão do sujeito, quer como interpretação do objeto — o
exclusivamente humano, o exclusivamente natural ou imanente. A arte se eleva ao
ideal e à verdade artística com uma probabilidade de feliz êxito tanto maior
quanto mais claramente refletir o infinito, o divino. Quanto mais vive o
artista a religião, tanto melhor está preparado para falar a linguagem da arte,
entender-lhe as harmonias, comunicar-lhe os frêmitos... O artista é por si
mesmo um privilegiado entre os homens; mas o artista cristão é, em certo
sentido, um eleito, porque é próprio dos Eleitos contemplar, apreciar e
exprimir as perfeições de Deus. Procurai a Deus aqui em baixo na natureza e no
homem, mas sobretudo em vós mesmos; não tenteis em vão exprimir o humano sem o
divino, nem a natureza sem o Criador; harmonizai, pelo contrário, o finito com
o infinito, o temporal com o eterno, o homem com Deus, e assim atingireis a
verdade da arte, a verdadeira arte”.
A Instrução recorda solenes decisões de Concílios e Sínodos,
e cita as disposições do Código de Direito Canônico, que constituem o corpus
juris da arte sacra, entendida como precioso e venerável instrumento do culto
externo.
Convém, entretanto, notar que nem toda arte sacra é litúrgica
e que, quando não se enquadra nas exigências e funções do culto, está menos
sujeita às leis litúrgicas.
Existe a arte sacra histórica ou narrativa, como a Missa de
Bolsena, de Rafael; existe a arte da devoção privada, como os medalhões de
núpcias de Boticelli; há a arte religiosa romântica, como o Angelus de Millet
ou o Refugium peccatorum de Nono. Essa arte se desenvolve fora das igrejas e
basta que não contenha algum falso dogma e tenha o cunho da honestidade e da
dignidade que Leonardo chamava decoro e Michelangelo, conveniência.
Ao lado desta arte sacra que chamaremos exterior, existe a
arte propriamente litúrgica ou eclesiástica, isto é, a que, como a música, a
literatura, o drama, vive nas igrejas e para as igrejas, preparando o lugar
para o próprio culto (arquitetura), pintando e esculpindo as imagens sagradas
para serem objeto de veneração ou explicação do catecismo (biblia pauperum). A
esta arte se acrescenta a variedade dos objetos eclesiásticos que fez a glória
do artesanato cristão (cruzes, cálices, ostensórios, candelabros, turíbulos,
etc.).
O Cristianismo, essa idéia-força, criou uma nova civilização
e criou sua arte própria, infundindo alma nas máscaras apáticas da beleza
clássica.
O templo pagão, que era o local reservado à divindade,
torna-se igreja, isto é, o lugar para as reuniões litúrgicas e de catecismo dos
fiéis. Nas galerias obscuras das Catacumbas brilha a intensa luz da vida imortal.
As lágrimas da dor humana caem suavizadas ao pé da Cruz.
Michelangelo disse: “A arte verdadeira e nobre é religiosa.
Não é senão uma cópia da perfeição de Deus, uma sombra do pincel com que Ele
pinta, uma melodia, uma inspiração de acordo com Ele” (Grim., “Vida de
Buonarotti”).
Ao invés, quando a pretensa arte sacra moderna, esquecendo o
grande passado e extraviando-se na floresta selvagem das artes figurativas
cubistas, abstracionistas, etc., trai seu caráter e fim, deforma e degrada as
veneráveis imagens de Jesus Cristo, da Virgem Maria e dos Santos, suscitando a
aversão e o escândalo, como visões blasfematórias, condena-se ela a si mesma e
cai sob a sanção do can. 1279: Que o Bispo não permita jamais que sejam
expostas nas igrejas ou noutros lugares sagrados imagens de falsos dogmas, e
que não tenham a dignidade e honestidade necessárias e que constituam para o
povo simples uma ocasião de erro.
Um filósofo ilustre escreveu: “É evidente que uma obra de
arte tem um valor tanto maior quanto mais rica é a idéia da verdade universal
que vive na individualidade de sua representação. O importante é que os dois
valores não se contrariam, isto é, que para enriquecer a idéia da verdade não
se lhe superponham concepções abstratas que lhe velem a luz” (B. Giuliano, “A
arte e a transcendência da verdade”, Estética, pág. 442).
Sua Santidade Pio XII declara que é preciso “respeitar as
exigências da comunidade cristã mais do que a opinião e o gosto pessoal dos
artistas” (Mediator Dei).
Na arte cristã primitiva o Crucifixo era representado como um
triunfador, com a coroa real sobre a cabeça: regnavit a ligno Deus. Repugnava
representar Jesus Cristo humilhado sobre a cruz. Num painel das colunas de São
Marcos em Veneza (século VI), Nosso Senhor está colocado na cruz sob a forma de
Cordeiro. Mais tarde, porém, estabeleceu-se o costume de representar o
Crucifixo factus pro nobis maledictum (Gal. 3, 13). Grunewal, no século XVI, pintou um Crucifixo com realismo
revoltante.
De qualquer modo devem os artistas abster-se de deformar e
degradar a humanidade de Cristo, da Mãe Imaculada de Deus, e devem fugir ao
costume, infelizmente muito difundido, de representar os Apóstolos e os Santos
com fisionomias simplórias e com mãos e pés desproporcionados.
Catolicismo n° 22, outubro de 1952