terça-feira, 23 de outubro de 2018

412ª Nota - Sobre a Apostolicidade da Igreja



"Ao afirmarmos que a verdadeira Igreja é necessariamente apostólica queremos significar que primeiramente ela deve professar a doutrina ensinada pelos apóstolos, isto é, que tem a apostolicidade de doutrina; e que, em segundo lugar, deve remontar-se pela legítima sucessão dos seus chefes, até aos próprios apóstolos, o que se chama apostolicidade de ministério ou de governo.
A autoridade conferida por Jesus Cristo aos apóstolos abrange um duplo poder: o da ordem e o da jurisdição. O da ordem é conferido pela ordenação; refere-se à administração dos sacramentos, e é inamissível. Somente os bispos o possuem pleno; e por isso não há ministério sacerdotal que eles não possam exercer; e somente a eles compete também o comunicar aos outros o caráter sagrado que eles receberam. E embora, um bispo se tornasse cismático ou herege, ordenaria, contudo, valida, ainda que ilegitimamente, a bispos e padres.
O poder de jurisdição exige instituição canônica ou uma nomeação formal, que pode ser revogada pela autoridade superior. Compreende este poder jurisdicional tanto a faculdade de exercer legitimamente o poder da ordem como o direito de tomar parte no governo da Igreja.
Para ser legítimo sucessor dos pastores da Igreja e pertencer à hierarquia da jurisdição, não é suficiente que um bispo tenha recebido o poder da ordem, mas precisa ter também o poder da jurisdição; ou, por outra, não basta que tenha sido sagrado bispo; deve, além disso, receber também o encargo de governar uma diocese. Esta proposição, que se pode deduzir do modo de falar de todos os Padres, ao condenarem como cismáticos os bispos das dioceses por estes usurpadas, é em si mesma bastante clara. O episcopado tem por fim a administração de uma determinada igreja; e para isso é mister  que ele tenha vassalos. Ora, ninguém se dá a si mesmo os vassalos. Só Jesus Cristo, que de seu Pai recebera as nações por herança, podia confiar a quem lhe aprouvesse o encargo ou poder de governar os fiéis, isto é, o poder de jurisdição; e confiou-o de fato aos apóstolos e especialmente ao cabeça de todos, São Pedro para o transmitir aos demais.
Quanto ao modo de transmissão, que não foi determinado pelo mesmo Senhor Jesus Cristo, pertence aos apóstolos o designá-lo. Pode este modo variar com o volver dos tempos, sobretudo quanto à designação dos membros, que deviam receber a jurisdição, sendo estes escolhidos, já por eleição, já por apresentação, já apenas por uma simples escolha do sucessor de São Pedro, que tem essencialmente o direito de livre nomeação para todas as dignidades inferiores à sua. Quem quer que não receber a jurisdição, segundo as normas canônicas em seu tempo vigentes, salvaguardando-se sempre os imprescritíveis direitos do sumo Pastor, fica sem a posse dela; e ainda que tivesse recebido o caráter episcopal, não ficava tendo parte na hierarquia de jurisdição. Carecendo de sede e de vassalos, não pode, está claro, ser chefe da Igreja nem faz parte integrante da sucessão apostólica."
(Excerto do capítulo “Apostolicidade da Igreja de Jesus Cristo”, do “Curso de Apologética Cristã” (séc. XIX), do Padre W. Devivier, SJ, abençoado e elogiado por São Pio X)

sábado, 20 de outubro de 2018

411ª Nota - Algumas considerações sobre o Capitalismo



Há algum tempo, escrevendo sobre as etapas da revolução igualitária na economia dos países ocidentais, tivemos oportunidade de acentuar que o capitalismo constituiu, nos séculos XIX e XX, um dos marcos dessa evolução. Admitida essa tese histórica, não se segue, contudo, que nós, católicos, devamos adotar em relação ao capitalismo a mesma atitude de repulsa radical que assumimos para com o socialismo e o comunismo. Não pensam assim os chamados católicos esquerdistas, que condenam o capitalismo considerado em si mesmo e o atacam pelo menos com a mesma violência com que criticam certos aspectos do marxismo ou dos sistemas socialistas. Propomo-nos, por isso, neste artigo, submeter o regime capitalista a uma breve análise crítica à luz da doutrina da Igreja, que nos capacite a apontar qual das duas posições indicadas pode ser reputada ortodoxa. Comecemos por considerar o que é concretamente o capitalismo.
Para um exame em profundidade vamos tomar o problema sob vários aspectos: o econômico, o social e o moral.

Sob o aspecto econômico, o capitalismo é o sistema caracterizado pela aceitação do princípio da livre iniciativa na ação econômica dos indivíduos. A mola propulsora dessa iniciativa se encontra no desejo de lucro. Os indivíduos fundam empresas e procuram expandir suas atividades tendo em vista auferir lucros. Quanto maior a ambição, maior será o número de iniciativas, de empreendimentos, de invenções, etc. Outra instituição típica do capitalismo é a do salariado, que consiste no aluguel do trabalho, mediante remuneração em dinheiro ou, em casos excepcionais, em espécie. Que o salariado nada tem de contrário à dignidade da pessoa humana, já o declarou o Papa Pio XI, afirmando que, em si, nada apresenta ele de intrinsecamente mau («Quadragesimo Anno») .
Do ponto de vista econômico, e considerando-o apenas em seus princípios, nada temos a censurar no capitalismo.

Sob o aspecto social, nota-se que neste sistema a diferenciação das classes está baseada quase exclusivamente na predominância dos valores monetários. As camadas superiores da população deixam, em grande parte, de ser constituídas segundo o critério do sangue e dos serviços prestados ao Rei ou outros superiores hierárquicos, como na Idade Média, para surgirem como uma decorrência da posse de riquezas.
Em consequência da ação desse princípio selecionador das classes altas, observa-se no capitalismo uma acentuada capilaridade social, isto é, resultam muito numerosos os casos de ascensão rápida às culminâncias da sociedade, e de rápida decadência de membros da oligarquia dominante. Esse fenômeno, muito marcante nos Estados Unidos, onde o capitalismo atingiu um elevado grau de coerência e de desenvolvimento, talvez seja menos visível em outros países de aquém cortina de ferro, mas atua em todos eles.
É óbvio que essa forte capilaridade se traduz numa periódica e célere rotação das elites. A instabilidade que isso acarreta para a vida social é flagrante.
A preservação da civilização católica exigiria um sistema diferente, capaz de garantir a transmissão durante muitas gerações, dos caracteres, dos hábitos e dos progressos morais adquiridos pelos indivíduos e pelas famílias. Evidentemente, nunca poderá a humanidade, como tal, superar de todo as deficiências decorrentes do pecado original, mas, na medida em que uma civilização se cristianiza, tende a converter em hábito social as virtudes cristãs. Tais hábitos devem impregnar a vida social a ponto de se transformarem quase numa segunda natureza, que os indivíduos adquirem como que insensivelmente, apenas pelo fato de viverem nesse ambiente são e católico. Mas, para isso, é necessário que as famílias, especialmente as aristocráticas, possam manter-se, por muitas e muitas gerações, sem precisar entregar-se a atividade econômicas demasiado absorventes.
Não queremos dizer que o dinheiro deva ser absolutamente condenado como elemento diferenciador das classes sociais. O que pretendemos afirmar é que ele não é o único nem pode ser o principal elemento dessa diferenciação. Na Idade Média e no «Ancien Régime» o acesso à nobreza só se fazia depois que a família pretendente a esse estatuto provasse que por três ou quatro gerações gozara de fortuna e tivera um padrão de vida correspondente ao de nobre, e que, além disso, prestara ao Rei serviços capazes de justificar a promoção. Desse modo, as elites se depuravam lentamente e tinham tempo (contado por gerações) de absorver os hábitos, os sentimentos e, em certo sentido, a atitude psicológica da aristocracia. Quando é principalmente ou quase exclusivamente o dinheiro que distingue e diferencia as classes, deixa de haver esse cuidadoso processo de seleção e aprimoramento. As famílias mantêm-se pouco tempo na primeira plana, pois ou descuidam de suas fortunas para se dedicarem à cultura, e estarão assim condenados a empobrecer e a perder sua posição, ou, para evitá-lo, são absorvidas pela vida econômica e abandonam a vida de cultura. Por um processo ou por outro, estão as elites dirigentes fadadas a uma continua renovação das famílias que as compõem. Aquela estabilidade necessária ao refinamento e ao aprimoramento da cultura deixa de existir. Esse sistema de intensa capilaridade social traz consigo o gosto das novidades, inclinação que, exagerada, contribui para romper os vínculos que devem normalmente ligar as gerações, e que pelo contrario são muito fortalecidos pela conservação de objetos e ambientes antigos, especialmente quando tenham pertencido a uma mesma família durante séculos.
No campo ético não se pode silenciar sobre um princípio que tem sido aceito com frequência, pelo capitalismo, como verdade indiscutível: o da independência da economia face à moral. Houve um tratadista que chegou a extrair desse postulado todas as suas consequências, a ponto de afirmar que comete um erro econômico quem, podendo roubar, não rouba. Na realidade, poucos subscreveriam essa afirmação, o que não impede que o sistema capitalista, considerado em concreto, tenha vivido mais ou menos sob o império desse princípio.

Sob o aspecto moral não se pode aceitar a exploração de paixões humanas inferiores, como molas propulsoras da economia. E o que tem sido feito, por tantos capitalistas, com a ambição de enriquecer e a inveja dos superiores. Há em todo homem um desejo, que pode ser sadio e ordenado, de melhorar as condições materiais de sua vida, mas o capitalismo tem procurado exacerbar essa inclinação, despertando nos indivíduos necessidades fictícias que os levam a aplicar à atividade econômica todas as suas energias e capacidades, e desviando-os de qualquer outra manifestação de sua personalidade. Vida de família, cultura, religião, tudo é sacrificado ao «grande ideal» do enriquecimento, que por sua vez garante aos indivíduos a ascensão social.
Como se vê, essas apreciações morais atingem o capitalismo como ele historicamente existiu. Entretanto, considerado esse regime sem os abusos a que se prestou, e tão somente em seus aspectos mais essenciais, não se pode dizer que tenha ele qualquer coisa de contrário à justiça e à caridade.
A lista de aspectos do capitalismo que apresentamos é exemplificativa, não pretende esgotar as características desse sistema; mas é satisfatória para os propósitos deste artigo. Essa enumeração já nos parece suficiente para justificar a afirmação de que o capitalismo não corresponde ao ideal de uma civilização católica, mas não é tampouco a realização do seu extremo oposto.
É em princípio, um sistema legítimo, se bem que esteja longe de ser perfeito. Há nele o respeito a, pelo menos, dois valores ou direitos fundamentais da pessoa humana, a saber: a propriedade particular, e a preeminência do indivíduo sobre o Estado. O capitalismo permite que subsista a desigualdade social, embora tenda a alterar constantemente, através de uma rotação rápida e continua, a composição das elites e classes superiores. A propriedade e a livre iniciativa constituem nele um poderoso obstáculo à realização do igualitarismo social, pois ambas implicam na aceitação do princípio de que os homens podem ter padrões de vida muito diversos, de acordo com seus esforços, capacidade de trabalho e inteligência. Se há censuras a dirigir ao capitalismo, não é porque ele defende a propriedade privada e a iniciativa individual.
Os esquerdistas, mesmo católicos, combatem esse sistema, não pelos seus aspectos igualitários, mas pelo que ele conserva de tradicional e que impede a plena implantação do igualitarismo, ou seja, sobretudo, pela manutenção do instituto da propriedade privada. De fato, na linguagem das esquerdas, capitalismo e propriedade particular são sinônimos, e as críticas dirigidas ao primeiro são no fundo ataques à segunda.
Não pode um católico combater o capitalismo com esses argumentos. Sua crítica será oposta à dos esquerdistas. O católico censurará esse sistema por sua tendência para o nivelamento social, ao passo que o esquerdista o condena justamente porque ele obsta a eclosão do pleno igualitarismo, através do instituto da propriedade particular e do princípio da livre iniciativa.
Apontando no capitalismo, tal como se realizou nos séculos XIX e XX, um passo importante para a revolução universal, não podemos todavia desconhecer que subsistem nele instituições inspiradas pelo direito natural e que o fazem defensável pelos católicos, sem qualquer escrúpulo de consciência.
Diz-se que Marx costumava comentar que o capitalismo era um mal em face do socialismo, mas um bem diante da Idade Media, porque significava um passo em direção contraria a esta última. Invertendo os termos, nós, católicos, podemos usar esta fórmula: em relação à Idade Média o capitalismo representa um mal, mas comparado ao socialismo é um bem, e como tal defensável.
(Luiz Mendonça de Freitas, Outubro de 1958)
(1) N. da R. — "As hábeis gradações da socialização universal", n.º 71, novembro de 1956.

410ª Nota - "Façamos progredir o Islã e a África será nossa"


O Papa Pio XII em uma das suas últimas Encíclicas "Fidei donum", chamou o atenção da Igreja Universal para os quatro grandes perigos que ameaçam o futuro humano e cristão da África hodierna: o nacionalismo exacerbado dos europeus e dos indígenas, o materialismo ateu, o Islã e a civilização técnica.
Nos últimos tempos assistimos ao reaparecimento do islamismo como força poderosa no palco da política mundial. "Catolicismo" já tratou do assunto, mais de uma vez, em anos passados. Mas a religião de Alá continua a conquistar novos adeptos e novas nações: vários territórios, nos quais a presença muçulmana é mais intensa, ficaram independentes ou ficarão proximamente. Mais cedo ou mais tarde os sequazes de Mafoma voltarão os olhos para o Ocidente cristão que, em outras épocas, tentaram conquistar para sua falsa crença. Hoje as consequências de uma tal conquista seriam piores, se é que se pode piorar o péssimo, porque ao lado do Crescente venceria o materialismo ateu, o comunismo, do qual os muçulmanos se tornaram aliados, quando não missionários.
O Islã não pode ser considerado um obstáculo sério para o comunismo, em que pese a opinião em contrário de muitos autores, inclusive católicos. Esclarecedoras a esse propósito são as palavras de um libanês, professor na Universidade de Beirute: "Um mito que está muito difundido, e inteiramente fora da realidade, é a afirmação de que, entre os elementos que se levantam como uma barreira contra a expansão do comunismo, figura a hostilidade do Islã às doutrinas do materialismo ateu. Somos de opinião que o Islã, apesar de sua hostilidade às doutrinas do materialismo ateu, absolutamente não representa uma garantia contra a expansão comunista; pelo contrário, ele a prepara" (cf. "Etudes", julho-agosto-setembro de 1958).
Atualmente, o alvo principal do proselitismo maometano é a África negra. Ali o comunismo está presente, assistindo e favorecendo na sombra a evolução e o progresso do Islã. Estão sendo fundados estabelecimentos soviéticos em muitos pontos da costa ocidental africana. Esses estabelecimentos, sob o disfarce de associações teatrais e culturais, difundem a "boa nova" marxista; sob a capa de empresas comerciais, introduzem armas e mercadorias necessárias à consecução de seus funestos fins; sob as aparências de sociedades de pesca, adquirem navios e bases nos portos. Ainda recentemente, nativos que só possuíam flechas e fuzis antigos apareceram com o mais moderno armamento automático. Em algumas regiões, órgãos do Partido Comunista desenvolvem atividades administrativas paralelas a administração oficial, e seus elementos exercem sobre os habitantes a conhecida e eficiente chantagem: "Nós somos o povo: Se você não está conosco, é contra o povo. Deve morrer".
Procurando enfraquecer a influência das nações ocidentais e alimentando as aspirações de independência das colônias, o comunismo almeja dominar toda a África. Para isso encontra um auxiliar valioso no Islã. No Congresso Comunista africano de 1955, a palavra de ordem dada aos ativistas do Partido foi: "Façamos progredir o Islã e a África será nossa".
BREVE HISTÓRICO DO ISLÃ NA ÁFRICA NEGRA
A faixa de terra que se estende do Oceano Atlântico ao Índico, entre os paralelos 8 e 16 de latitude Norte, bem como a costa oriental até Moçambique, inclusive as ilhas de Madagascar e Comores e no centro o Ruanda Burundi, são as regiões do continente negro que sofreram e sofrem a mais ampla penetração do islamismo. Aparecem sombreadas no mapa que ilustra este artigo.
Os ataques dos maometanos à África, por terra e por mar, de acordo com as necessidades estratégicas, iniciaram-se no século VIII da nossa era. A Mauritânia foi o primeiro território negro a "converter-se", pelo poder das armas, à fé alcorânica. Em 1040, o que até então não passara de ação de tropas isoladas e independentes se transformou em "guerra santa" organizada. No século XIII, os nativos convertidos pelos primeiros conquistadores subjugaram outros povos negros, obrigando-os também a aceitar a religião de Maomé. No início do século XVII, porém, o Islã negro está em plena decadência.
Duzentos anos mais tarde há uma renovação da fé muçulmana entre os nativos, e novas guerras, novas conversões, acrescentam milhares de quilômetros quadrados aos que tinham sido anteriormente conquistados para a bandeira do Profeta. Essa renovação se deve, em grande parte, às confrarias secretas e de mistérios que dominam inteiramente o Islã africano do século XIX.
É nessa ocasião, também, que os europeus, principalmente franceses e ingleses, iniciam a colonizarão intensiva e programada do continente. Sua preocupação já não é mais converter os pagãos à verdadeira Religião, como acontecia com os portugueses, espanhóis e, mesmo, franceses do século XVI, mas conseguir matérias-primas e mercados para sua indústria nascente.
O PROSELITISMO MUÇULMANO MUDA DE MÉTODO
Os europeus, ao submeterem os povos africanos, foram obrigados, por conveniências comerciais, a impor a paz entre as diversas tribos, a exemplo da "pax romana". A partir desse momento o proselitismo islamítico muda de método. Não diminui, como poderia esperar; pelo contrário, aumenta. Já não se serve mais da espada, mas encontra novo apoio na administração colonial. A paz favorece intensamente a propaganda muçulmana, pois facilita as comunicações. Graças à técnica introduzida pelos colonizadores, as ideias viajam mais depressa que os homens: o telégrafo e o rádio penetram no coração da selva, os discos são vendidos até nas aldeias, o cinema instala-se progressivamente em todos os centros urbanos.
Um outro fato auxilia a tarefa dos maometanos, e é que, posta em convívio com a civilização europeia, a sociedade animista desmorona. Animismo é o nome dado ao conjunto das religiões tradicionais dos negros africanos, que cultuam os espíritos e têm no fetichismo o seu denominador comum. São religiões essencialmente locais e sociais; são próprias de um grupo humano determinado e não substituem a não ser em seu universo fechado, que rui em contacto com o mundo exterior. Funcionários, médicos, professores, comerciantes e colonos europeus trazem ideias novas, totalmente incompreensíveis para os nativos. Cria-se em suas almas um imenso vácuo. Quem o preencherá? O islamismo? O Catolicismo? O laicismo oficial?
O laicismo não atrai os negros, que o confundem, com razão, com o ateísmo de que os afasta seu espírito profundamente religioso.
O Catolicismo encontra desde logo adeptos em numerosas tribos; mas exige esforços que não agradam à natureza humana decaída. Ser católico implica na observância de regras morais árduas e na aceitação de dogmas sublimes. A alma negra, degradada por milhares de anos de paganismo, deve reformar-se totalmente para ser admitida no seio da Igreja. Essas circunstâncias adversas à ação da graça são agravadas — como veremos — pela atitude da administração colonial, que, longe de colaborar com as Missões, favorece positivamente o proselitismo alcorânico.
O Islã, pelo contrário, exerce uma grande sedução natural sobre esses povos. Várias de suas instituições são semelhantes às dos nativos: a estrutura social, as sociedades secretas de fundo esotérico, a poligamia, a escravatura, e muitas outras. O caráter tolerante da pregação islamítica, sua maleabilidade e poder de adaptação à barbárie são outros grandes fatores do êxito da religião de Maomé em terras da África. Por outro lado, a conversão ao islamismo, sem modificar os costumes pagãos e bárbaros do negro, representa para ele uma promoção na escala social: um muçulmano é mais respeitado nesse ambiente do que um animista ou um católico; o indígena maometano tem a impressão de pertencer a uma família espiritual antiga e gloriosa, a uma fraternidade eficaz — o auxilio mútuo entre os muçulmanos é real — a uma das grandes religiões do mundo. E, nos dias que correm, o Alcorão se apresenta a si mesmo como a esperança dos oprimidos, o redentor dos povos negros, o libertador dos africanos... Estes, esquecidos dos séculos de dominação cruel, do "crê ou morre", dos tributos de carne humana, voltam-se para o Islã que se arvora em mentor de pretensos nacionalismos afro-asiáticos e se identifica com movimentos de emancipação, ao mesmo tempo que prepara o terreno de sua própria expansão.
OS MISSIONÁRIOS DO ISLÃ E SEUS COLABORADORES CRISTÃOS
Os propagandistas do islamismo na África negra são, sobretudo, os viajantes. Em primeiro lugar, os comerciantes que, levando suas mercadorias por toda parte, são ao mesmo tempo missionários infatigáveis. Depois de alguns anos de peregrinação, eles fixam residência. Compram terras e mulheres. Fundam um estabelecimento comercial que será também um foco de proselitismo. Nos centros urbanos constroem bairros próprios, onde hospedam os estrangeiros pagãos e lhes ensinam o Alcorão. Nas estradas mais afastadas, em plena selva bruta, numa encruzilhada ou numa ponte, poder-se-á encontrar em ação um desses comerciantes-pregadores, geralmente hindus da seita ismaelita, dirigida pelo Aga Khan.
Outro missionário eficiente é o pastor nômade; enquanto conduz seu gado de pastagem em pastagem, ele vai conquistando novos correligionários.
Uma nova classe de viajantes surgiu nos últimos tempos, cuja importância para o proselitismo aumenta cada vez mais: os jovens que vão procurar trabalho longe de suas tribos, principalmente nas cidades. Capatazes e estalajadeiros, que são em geral muçulmanos, antes de darem um emprego ou um quarto para dormir, exigem que o candidato se converta à sua religião. Voltando à tribo, esses jovens fazem propaganda do Alcorão, pelo menos para se mostrarem superiores aos seus irmãos animistas.
O marabu é um missionário todo especial. Segundo a descrição de um Sacerdote católico que passou muitos anos na África, ele é vagamente alfabetizado, sabe alguns versículos do livro sagrado ou de algum comentador tradicional, e ostenta esses parcos conhecimentos como se fosse um sábio. Vangloria-se dos países que percorreu, dos centros alcorânicos que frequentou e dos homens "santos" que visitou. Dirige o culto a Alá e goza da consideração que, nessas populações profundamente religiosas, nunca falta aos homens de oração. E, sobretudo, o marabu não se acanha em substituir o feiticeiro da tribo, que acaba sendo expulso. Em algumas regiões são esses curiosos missionários os mais famosos "dominadores" de forças ocultas e satânicas.
A uma seita de caráter sincretista, Ahmadyia, o Islã deve uma inovação: a criação de missões organizadas. Esses sectários percorrem toda a África negra e procuram não só converter animistas, mas principalmente afastar seus irmãos de religião daquilo que se chamam de infecção do marabutismo. Seu prestigio é tal, que comumente os nativos lhes dão o nome de "bispos muçulmanos".
Os ortodoxos sunitas também iniciaram nos últimos anos uma ação missionária regular. A iniciativa coube ao governo do Cairo e é parte integrante da política geral do novo Egito. Recentemente, a Universidade de El Azhar, o maior centro de estudos muçulmanos da atualidade, inaugurou uma secção missionária: mais de mil alunos procedentes da África negra estavam inscritos em seus cursos no ano passado. Terminados os estudos, e depois de terem respirado a atmosfera revolucionaria que caracteriza essa Universidade, onde a religião está intimamente ligada à política, eles voltam para suas regiões de origem, convencidos e orgulhosos de sua nova missão, que se integra no plano de tornar muçulmano, e mesmo árabe (como às vezes se pode entrever), o seu mundo pagão.
Mais, talvez, do que qualquer destes propagandistas, os europeus, e especialmente a administração colonial, favoreceram o progresso do Islã na África. - Mons. Bressoles, Diretor da Obra Pontifícia da Santa Infância e Capelão Geral honorário da Marinha francesa, em conferência pronunciada em Paris para a "Alliance Jeanne d'Arc" ("La Pensée Catholique", número 55 de 1958) — trabalho do qual extraímos diversos dados citados neste artigo — afirma: "É um fato clamoroso que, durante cem anos, a administração francesa tenha quase sempre reservado sua benevolência e dado seu apoio ao Islã. Eu especifico: ela impôs chefes muçulmanos a agrupamentos animistas; deu-lhes professores muçulmanos, enfermeiras muçulmanas, funcionários muçulmanos, toda uma contextura à qual se soma, a seu tempo, a contextura militar que coloca geralmente os recrutas animistas sob a autoridade de graduados muçulmanos. Ela introduziu os marabus nessas populações. Fez administrar a justiça segundo o Alcorão, entre duas partes pagãs. Construiu mesquitas, escolas alcorânicas, casas muçulmanas para os habitantes mais civilizados das cidades, subvencionou o estabelecimento de Medersas (escolas superiores muçulmanas), organizou, financiou e patrocinou a peregrinação a Meca. Enfim, a administração francesa aumentou de todas as maneiras o prestigio do Islã, prodigalizando distinções e honras aos chefes muçulmanos, inclusive os marabus, proclamando-se grande nação muçulmana". É a Filha primogênita da Igreja fazendo-se passar por filha de Mafoma!
Um oficial do exército francês declarou recentemente: "Por meio de nossa administração, assim como através da facilidade de comunicações que colocamos à disposição de todos, fizemos mais pela difusão do Islã nos últimos cinqüenta anos do que os marabus em três séculos" (cf. "Etudes", número citado).
A administração inglesa, partindo de princípios protestantes, favoreceu os muçulmanos na mesma medida.
Acrescente-se a todo esse esforço de proselitismo a dura realidade de que o maometano não se converte com facilidade ao Catolicismo. O animista feito sectário do Crescente sente orgulho de sua nova religião, e a sociedade alcorânica vincula de tal forma a alma de seus adeptos, que estes se tornam como que incapazes de abandoná-la.
Uma população evangelizada, por sua vez, não presta ouvidos aos arautos do Profeta, que, diante dela, perderam todo e qualquer prestígio. A pregação do Evangelho constitui a única barreira sólida aos progressos do Alcorão.
O PERIGO EXPRESSO EM NÚMEROS E ESTATISTICAS
Alguns observadores negam a existência de um problema muçulmano nessas regiões.
Afirmam que a difusão do Catolicismo é ali muito mais rápida do que a do islamismo. Assim o Pe. Sastre, Sacerdote dahomês que foi Capelão dos estudantes africanos em Paris, escreve: "A propósito do Islã, é um erro, em nossa opinião, falar de uma ameaça ou de um perigo muçulmano na África negra. Uma tal visão das coisas esconde uma preocupação política". Nós é que poderíamos perguntar se a negação de um fato tão evidente, apontado ademais pelo Santo Padre XII, não tem atrás de si uma razão política não confessada.
A Sagrada Congregação de Propagação da Fé publicou ultimamente a seguinte estatística sobre a situação religiosa na África negra: população total, 150 milhões, dos quais 85 milhões (56%) de animistas, 47 milhões (31%) de muçulmanos e 18 milhões (12%) de católicos; de 1931 a 1951, houve 8.100.000 conversões ao Catolicismo e 19.200.000 ao Alcorão. Assim, para cada pagão convertido à Religião verdadeira, 2,5 aderem à superstição de Maomé.
Se considerarmos, não o conjunto da África negra, mas apenas a região por nós delimitada de início, teremos, segundo abundantes testemunhos de Padres missionários, um aumento de número de muçulmanos cinco vezes maior do que o de católicos.
Os 31% de adeptos do Islã estão concentrados nessa zona, que — como já ficou dito — aparece sombreada no mapa que ilustra este artigo. Ao sul do paralelo 8 de latitude Norte, excetuando-se a costa oriental, o islamismo é praticamente desconhecido: professam-no apenas 0,8% da população.
Para os católicos a proporção geral na África negra é de 12%. Mas, no Camerun, por exemplo, constituem eles 80% dos habitantes da Diocese de Yaundé, enquanto na Diocese contígua, mais ao norte, não são mais do que 0,03%. Uma simples media das populações católicas do Camerun não exprime, pois, toda a realidade concreta.
Os países de maior densidade muçulmana no continente negro, atualmente são: a Republica do Sudão com 80%; a Nigéria com 50%, e a África Ocidental Francesa com 41%.
LEVAR A REVOLUÇÃO ATÉ O CORAÇÃO DA FLORESTA VIRGEM
Se observarmos a ação da maior parte dos dirigentes do mundo muçulmano, verificaremos que eles estão transferindo o Islã do plano religioso para o político.
Esses dois planos nunca foram inteiramente distintos para os sectários do Profeta, mas até o presente a fé anima a política. Hoje, pelo contrário, a fé não subsiste mais nas elites a não ser como integrante de uma grande força política da qual elas pretendem assumir a direção. Algumas das personalidades mais conhecidas do movimento revolucionário na África negra, que inundam o Cairo de literatura piedosa, organizaram, quando estudantes em Paris, um Centro de ateísmo.
Essa fé política, contudo, é de natureza a prolongar a existência da fé religiosa. Ela terá necessidade de manter esta última como alimento espiritual para sua própria expansão e como elo entre povos muito diversos, que só o Alcorão consegue unir e animar de um orgulho racial.
Ainda recentemente, desencadeou-se uma campanha furiosa contra o Catolicismo nesses meios africanos que lutam pela emancipação dos "povos escravizados". O que mostra que o ódio religioso transmite-se ao campo político.
Essa ausência de fé religiosa autêntica facilita ainda mais o trabalho do comunismo, que não encontra obstáculo espiritual em sua tarefa de conduzir os muçulmanos para o materialismo ateu.
A docilidade desses povos à doutrinação soviética será obtida, também, à custa da destruição das peculiaridades regionais. O desaparecimento da família patriarcal, do clã, acarreta a ruína da autoridade dos chefes naturais e dos anciãos. O nativo fica exposto às influências das grandes cidades, já inteiramente dominadas pelo islamismo político e a um passo do ateísmo. Para alcançar esse resultado, nada melhor do que organizar uma grande comunidade africana e muçulmana que sufocará as características peculiares a cada tribo.
Durante nove séculos os maometanos do continente negro estiveram isolados do mundo islamítico, mesmo porque não tinham qualquer interesse em fazer bloco com ele e pouco o conheciam. Hoje, com o renascer do Islã, e com o papel cada dia mais saliente que as nações que o constituem se arrogam no teatro da política mundial, tudo mudou: a esperança de uma união maometana negra, integrada na comunhão dos povos muçulmanos, vai-se transformando em realidade. Nota-se nessas vastas regiões da África um recrudescimento da solidariedade religiosa e um desejo de unir-se politicamente em torno de algumas nações que representam o papel de grandes potencias: o Egito e a Arábia Saudita.
O Congresso islamítico, organismo permanente com sede no Cairo, tem por finalidade dar uma forma institucional moderna à ideia tradicional de fraternidade muçulmana. O Egito assume a posição de líder do Islã. Ele quer criar uma espécie de Califado sem a fé.
O coronel Nasser, presidente egípcio, tornou claras suas pretensões sobre a África negra no seu livro-manifesto "A Filosofia da Revolução": "Quanto ao continente africano, direi somente que não podemos, de maneira alguma permanecer à margem da horrenda e sanguinária luta que se desenrola atualmente no centro da África, entre cinco milhões de brancos e duzentos milhões de negros... é-nos impossível renunciar às nossas responsabilidades de auxilio e assistência, e esquivar-nos da missão de levar nossa civilização até o coração da floresta virgem".
Os negros que atingiram um maior grau de civilização seguem apaixonadamente as notícias da guerra na Argélia. Suas simpatias estão inteiramente voltadas para os rebeldes.
As palavras de ordem lançadas pelos imanes de Meca circulam de Fez a Karachi e do Cairo ao Tchad, graças aos meios de comunicação que a técnica coloca à disposição do homem moderno, e à ação eficiente de uma elite formada nas Universidades muçulmanas.
No Congo Belga, o presidente do Centro Real Africano declarava em 1956: "É um incrédulo que vos fala e que não é suspeito de hostilidade para com o ensino oficial, mas que, conhecendo o caráter místico do negro, pergunta com angústia se, querendo libertá-lo de toda crença, não o estão impelindo, ingenuamente, a engrossar as fileiras dos muçulmanos fanatizados. A quem sorrir e levantar os ombros à evocação desse perigo, eu aconselharia informar-se sobre o número de ouvintes que, na região leste da Colônia, escutam as transmissões da Rádio do Cairo em língua swahili" (cf. Agência Fides, 22 de outubro de 1956).
Em 1957, 25% das fitas passadas nos cinemas de Bamako, capital do Sudão Francês (África Ocidental Francesa), eram de origem egípcia e em língua árabe. Algumas eram claramente de propaganda. Com esses métodos o Islã negro vai, pouco a pouco, sendo seduzido para constituir um só todo com a grande família muçulmana.
Em 1950, o jornal egípcio "Etaalaat" publicava um editorial do qual transcrevemos este trecho: "Irmãos, foram os agentes imperialistas que trabalharam escandalosamente para enfraquecer a fé no coração dos muçulmanos. Eles ofenderam a alta moral muçulmana, encorajando o uso de beberagens alcoólicas e o estabelecimento de lugares de imoralidade. É com essas armas repugnantes que os imperialistas conseguiram reduzir os muçulmanos a essa posição deplorável na qual se encontram atualmente no mundo. Irmãos, congregai-vos em torno da causa do Islã e esquecei os vossos motivos de desunião. Os acontecimentos mundiais exigem que estejamos sempre em contacto, a fim de destruir os imperialistas e expulsá-los de nossas terras. Os povos muçulmanos devem, seguindo os ensinamentos do Profeta, organizar-se para barrar os passos do colonialista explorador. A formação de uma união muçulmana é agora mais necessária do que em qualquer época da história".
Note-se que esse apelo foi publicado em 1950, antes da nacionalização de Suez, antes da retirada das tropas inglesas da zona do Canal, antes da independência da Tunísia, do Marrocos, de Ghana, do Sudão, antes, enfim, dos acontecimentos que culminaram com a formação de um bloco muçulmano que hoje é capaz de intervir de maneira decisiva na política internacional. O caso do Líbano e do Iraque é um exemplo de como essa intervenção pode ser realmente decisiva.
Continuará o Ocidente a colaborar, senão por ação, ao menos por omissão e inércia, para que se realize o voto comunista a que aludíamos: "Façamos progredir o Islã e a África será nossa"? É o que nos resta perguntar.
(Sérgio Brotero Lefevre, em Catolicismo n.º 96, dezembro de 1958)

409ª Nota - Não há "convergências" entre socialismo e cristianismo



As Edições Karl Zink publicaram as atas de um congresso realizado há precisamente um ano em Munique, com a aprovação da Autoridade Eclesiástica e por iniciativa da Academia Católica Bávara. Foi uma reunião de especialistas de sociologia cristã e representantes do socialismo, para examinar as relações existentes entre o Cristianismo e o socialismo.
Não é sem interesse folhear a obra que acaba de aparecer.
Podia ler-se recentemente, num jornal italiano, que "numerosos escritores da Contrareforma foram de inspiração socialista", e que "as afirmações concernentes à pretensa incompatibilidade entre o Catolicismo e o socialismo não têm nenhum fundamento verdadeiro". No decurso do congresso do Partido Socialista Italiano, há pouco encerrado, foi igualmente declarado que convém "abrir caminho à convergência natural das massas católicas e socialistas", passando "por cima das cabeças dos dirigentes e das notabilidades".
Mas, na exposição sincera e leal da doutrina católica e da concepção socialista, feita pelos relatores do Congresso de Munique, se manifestam claramente as diferenças que contrapõem uma à outra e a total ausência de convergência entre elas.
O SOCIALISMO "MODERADO" FOI CONDENADO POR PIO XI
Já na Encíclica "Quadragesimo Anno", de 1931, considerando as transformações sofridas pelo socialismo, Pio XI ressaltava que este se tinha dividido em dois grupos principais, frequentemente hostis um ao outro, "mas sempre tais, que nenhum dos dois se afasta do fundamento próprio a todo socialismo, contrário à Fé cristã".
O primeiro destes dois partidos — explicava Pio XI — é o Partido Comunista, que, inspirando-se no mais baixo materialismo, professa e sustenta uma luta de classes encarniçada e a abolição total da propriedade privada. A natureza deste partido é a justo título definida como "ímpia e injusta".
O segundo, mais moderado, é o que conservou o nome de "socialismo". Não somente rejeita o recurso à violência, mas, sem chegar ao repudio da luta de classes e da abolição da propriedade privada, pelo menos as mitiga com atenuações e abrandamentos.
Seguindo este caminho, as máximas do socialismo mais moderado podem chegar a aproximar-se das reivindicações apresentadas pela doutrina social cristã.
Isto posto, o Pontífice se dedicava a responder à dúvida expressa por alguns que se perguntavam se, atenuado o rigor dos falsos princípios da luta de classes e da abolição da propriedade privada, "os princípios da verdade cristã não poderiam, também eles, ser mitigados de algum modo, a fim de caminhar rumo ao socialismo e poder encontrar-se com ele sobre uma via media".
A resposta é clara: "considerado quer como doutrina, quer como fato histórico, quer como ação, o socialismo, se continua sendo verdadeiramente socialismo, mesmo depois de ter concedido à verdade e à justiça o que acabamos de dizer, não pode conciliar-se com os princípios da Igreja Católica, pois a concepção que ele tem da sociedade não poderia ser mais contraria à verdade cristã".
RAZÃO DE SUA INCOMPATIBILIDADE COM A RELIGIÃO CATÓLICA
A Encíclica nos dá também a razão disto. O fim do homem é que, "vivendo em sociedade e sob uma autoridade emanada de Deus, ele cultive e desenvolva plenamente todas as suas faculdades para louvor e gloria de seu Criador, e, cumprindo fielmente os deveres de sua profissão..., assegure sua felicidade não só temporal mas também eterna. O socialismo, pelo contrário, ignorando completamente este fim sublime do homem e da sociedade, ou desprezando-o, supõe que a comunidade humana foi constituída exclusivamente em vista do bem-estar". E como o bem-estar material não pode ser obtido sem o desenvolvimento da produção, este se torna uma exigência suprema, à qual devem ser submetidos e mesmo sacrificados "os bens mais elevados do homem, sem excetuar a liberdade, em razão das exigências de uma produção mais racional. Este golpe desferido contra a dignidade na organização socializada da produção, será largamente compensado, asseguram eles, pela abundância dos bens que, produzidos socialmente, serão prodigalizados aos indivíduos. A sociedade, portanto, como a sonha o socialismo, de um lado não pode existir, nem mesmo conceber-se, sem uma coação manifestamente excessiva, e de outro, goza de uma licença não menos falsa, visto que nela desaparece toda verdadeira autoridade social; com efeito, esta não pode fundar-se sobre os interesses temporais e materiais, mas só pode provir de Deus, criador e fim último de todas as coisas".
"A FORTIORI" FOI CONDENADO O SOCIALISMO EXTREMISTA
Este ensinamento solene, sendo válido para o socialismo transformado e moderado, o é com maior razão para o socialismo que aceita o marxismo como fundamento; que, ao mesmo tempo em que se proclama democrático e independente do comunismo, exclui, relativamente a este último — como ocorre na Itália — "todo antagonismo preconcebido, sem prejuízo da união dos operários nas lutas de reivindicação imediata, e acima de tudo nas lutas da C. G. I. L. (1)..., na defesa dos postos de mando nas municipalidades, nas cooperativas, nas organizações de fábricas ou de empresas"; que se propõe "privar as classes capitalistas de todo direito de propriedade"; para o qual "as reformas de estrutura" são a "reforma atual da luta pelo poder"; que propugna "uma direção pública da economia, um plano, um controle dos investimentos, a nacionalização dos setores industriais de interesse público".
INCONCEBÍVEIS ESPERANÇAS DE COOPERAÇÃO ENTRE CATÓLICOS E SOCIALISTAS
Apesar da clareza dos ensinamentos pontifícios, alguns, preocupados excessivamente com realizações práticas imediatas, quereriam, ao menos temporariamente, pôr de lado os princípios.
Mas não vemos de que modo se possam ignorar os fundamentos ideológicos que inspiram, caracterizam, determinam o fim último da ação prática. A verdade é que, embora por vezes os socialistas recorram ao Evangelho, de fato lhe falseiam o sentido, e, nos princípios essenciais, há antítese entre Cristianismo e socialismo.
O TOTALITARISMO ESTATAL NO SISTEMA SOCIALISTA
A concepção socialista do Estado não é cristã. O Estado senhor da economia é senhor de tudo. O totalitarismo econômico leva inevitavelmente a atribuir ao Estado funções, encargos, direitos, que não lhe cabem. O socialismo o transforma numa gigantesca máquina administrativa, que despersonaliza o indivíduo pela multiplicidade dos seus controles. Ademais, o socialismo (embora não seja o único nessas condições) separa a economia da moral, enquanto que para o Cristianismo a ordem econômica e a ordem moral não são estranhas uma à outra, mas dependem uma da outra.
A LUTA DE CLASSES É CONDENADA PELA IGREJA
Nas relações entre as classes, o socialismo é pela luta, se bem que sob forma mitigada. Ora, a luta de classes é um princípio errôneo, que a Igreja não pode aceitar, entre outras razões, porque, conforme mostrou Pio XII, ela não pode ser um fim social e não resolve o problema do trabalho. A Igreja ensina que se deve tender à colaboração e à harmonia das classes através de uma coordenarão entre o empregador e o operário, entre o capital e o trabalho; Ela ensina igualmente que a oposição entre ricos e pobres, entre operários e patrões, pode ser resolvida pela aplicação integral dos princípios cristãos.
IMPIEDADE OU INDIFERENTISMO RELIGIOSO NO REGIME SOCIALISTA
Diferentes — não é necessário dizê-lo — são as posições de ambos em face da Religião. O socialismo, quando não se opõe abertamente a esta, considera-a como um fato puramente pessoal, e chega à indiferença para com toda forma de religião. Esta indiferença é contraria à razão e, como nasce do ateísmo, conduz a ele.
O SOCIALISMO DESTRÓI OS FUNDAMENTOS DA FAMÍLIA
Concebem ambos o matrimônio de maneiras também opostas. Para a Igreja ele é uma instituição sagrada e não um contrato puramente civil. A vida familiar, segundo o direito natural, se funda sobre a indissolubilidade do vínculo. Os princípios socialistas, pelo contrário, dissolvem e destroem a vida familiar, pois lhe arrebatam a força resultante do matrimonio cristão e favorecem o divórcio: relembremos a este propósito o projeto de lei de parlamentares italianos em favor de um "pequeno divórcio" (pequeno por enquanto).
Negando à vida humana todo caráter espiritual, o socialismo faz do matrimonio e da família uma instituição puramente artificial e civil, isto é, o fruto de um sistema econômico determinado. Em oposição, a família é para o Cristianismo a base e a célula fundamental da sociedade, o centro de toda a educação e de toda a cultura. Ela possui direitos inalienáveis e independentes do poder do Estado, tais como, justamente, a indissolubilidade, a proteção da vida antes do nascimento, os direitos dos pais sobre os filhos perante o Estado, — direitos que este não pode violar.
ESTATISMO E AGNOSTICISMO NO ENSINO SOCIALISTA
Diferentes são, enfim, os princípios cristãos e socialistas relativos ao ensino e à educação. Em primeiro lugar, o Cristianismo não pode aceitar o princípio segundo o qual o ensino seria uma função principalmente, senão exclusivamente, da competência do Estado. Para o socialismo, ademais, a liberdade de ensino consistiria na escola laica, neutra, de total agnosticismo quanto ao ensino religioso. É supérfluo acentuar quanto essa concepção está afastada da doutrina católica sobre a educação.
O MATERIALISMO É INERENTE AO SOCIALISMO
Não ressaltamos senão algumas das divergências fundamentais entre o Cristianismo e o socialismo. A razão profunda dessas divergências reside no fato de o socialismo não ter em nenhuma conta a ordem sobrenatural. Disto decorre que, mesmo nas reivindicações sociais, ele parte de princípios diferentes, emprega meios diferentes, tende a fins diferentes dos do Cristianismo.
Poder-se-ia assinalar que os princípios errôneos expostos acima não são próprios ao socialismo, mas pertencem também a outras ideologias, tais como o liberalismo ou o laicismo, É bem assim, com efeito. Durante o congresso de que falávamos no início deste artigo, uma das mais importantes personalidades presentes frisou exatamente que um dos componentes do marxismo é o liberalismo racionalista.
A MÃO ESTENDIDA: PERIGOSO E FALAZ ESTRATAGEMA
Isto dito, vê-se claramente o que pensar de certas mãos estendidas. Neste momento, na Itália, o socialismo estende suas mãos para dois lados: uma delas, em nome da unidade da classe operaria, quer apertar a do comunismo. A outra está estendida aos católicos, e não somente pelos socialistas que, embora ficando solidários com os comunistas, afirmam que desejam situar-se no terreno da democracia, mas também por aqueles que querem estar com os comunistas em qualquer caso, e pedem que os católicos votem no Partido Socialista, reservando a este último papel de elo de junção entre católicos e comunistas.
Estes, de sua parte, estão sempre prontos, sob os mais diversos pretextos, a atrair a si quantos possam nutrir a ilusão de utilizá-los para seus fins, quando na realidade são esses ingênuos que se tornam instrumentos mais ou menos inconscientes do comunismo.
UMA SÁBIA ADVERTÊNCIA DE PIO XI
Pio XI igualmente alertou os fiéis contra este perigo, nessa outra grande Encíclica que é a "Divini Redemptoris": "Sem nada abandonar de seus princípios perversos, eles convidam os católicos a colaborar no terreno humanitário e caritativo, como se diz, propondo às vezes coisas inteiramente conformes ao espírito cristão e à doutrina da Igreja... O comunismo é intrinsecamente mau, e não se pode admitir colaborarão com ele em terreno algum, por parte de quem quer que deseje salvar a civilização cristã. Se alguns, induzidos em erro, cooperassem para a vitória do comunismo em seu país, seriam os primeiros a perecer, vítimas de seu próprio desatino".
Nada perderam de sua atualidade estas palavras; dir-se-ia mesmo que as circunstancias fazem com que se apliquem melhor ainda aos problemas de nossa época.
(1) Confederação Geral Italiana do Trabalho, organismo sindical dominado pelos comunistas (N. R.).