sexta-feira, 19 de agosto de 2016

241ª Nota - Marxismo, Evolucionismo e Existencialismo: loucuras modernas


Lembra-me aqui um manual marxista que me chegou às mãos, e em que o autor, para combater o que ele chamava de espiritualismo, prova a não existência da liberdade com um argumento deste quilate: um orador tem necessidade de beber água porque a prolongada eloquência seca a garganta. Bebe-a, então, por esse motivo físico e fisiológico, e não por livre arbítrio. Não me consta que tenha existido algum autor tão desvairadamente espiritualista que tenha chegado a negar a existência da garganta. O orador bebe água, efetivamente, porque a garganta secou. Esta explicação se enquadra bem em qualquer doutrina filosófica e em qualquer religião. É uma explicação sucinta e clara. Mas o que já não é tão claro, sobretudo para um marxista, é o motivo da eloquência. E se nós adicionarmos à pregação marxista as notas de fervor e de patético que costumam acompanhar a eloquência, ficará cada vez mais misteriosa a atitude daquele indivíduo que agora, num momento de clara racionalidade, bebe o seu copo d’água. O marxismo, como ninguém ignora, é uma grande aventura que tem por objetivo purgar a história do homem do espírito de aventura. Será a última aventura para acabar com a aventura, o último ímpeto de fervor para matar o fervor, o último esforço de heroísmo.
(...)
O evolucionismo é também uma doutrina nascida da mesma incapacidade de compreender, de suportar o aspecto de aventura que põe um frêmito na história do mundo. A variedade das espécies aparece diante desse tipo de observador como uma intolerável desordem. Sendo admissível que se busque, com o critério da economia de causas, a melhor explicação da diversidade, o evolucionista leva ao paroxismo essa razoável tendência, com a insensata ideia de abafar no nascedouro o que lhe parece ser um prurido de desordem. Ele quer inculcar ao universo uma disciplina de internato, e sonha pôr em ordem de marcha, em fila, todas as coisas do universo, desde o caramujo até o descobridor do pólo Sul. O existencialista, ao contrário, pretende libertar o homem das concatenações que o princípio da economia lhe impõe, deixando-o sempre no limiar de uma aventura. O homem não tem natureza: está sempre na origem; está sempre nascendo, úmido sempre das águas genesíacas. Será nessa mensagem que tanto valoriza o concreto, a experiência própria, que eu deveria buscar minhas lições de abismo?

(Gustavo Corção, excertos de Lições de Abismo)