quarta-feira, 3 de agosto de 2016

234ª Nota - O sinal da Cruz


Sinistra e horrorosa coisa era na antiguidade a cruz! Nela se concentrara toda a infâmia dos demais suplícios. É este nos Livros Sagrados o seu caráter: “O cadáver do crucificado não há de continuar de noite pendurado no madeiro; há de ser sepulto no mesmo dia; porque todo aquele que do madeiro pender fica amaldiçoado de Deus.” Por causa dessa lei é que Isaías, falando profeticamente de Cristo, disse: “Figurou-se-nos objeto desprezível, ele, o último dos homens”; e mais adiante chama-lhe “o humilhado”. Não era pois a cruz um mero suplício, era também uma maldição. “Maldito aquele que do madeiro pender!” Daí vem o brado profético do Livro da Sabedoria: “Condenemo-lo à morte mais vil!”, brado que os judeus com tanto rancor souberam repetir nesta curta frase: “Crucificai-o!” Isto é, morra, e seja maldito. Querem que nos vilipêndios de tal suplício se acabe de destruir o que a morte só por si não lograsse destruir. Não lhes passa pela ideia poderem encontrar-se no mundo homens que blasonem ser discípulos de um crucificado!

Para os romanos é a cruz o “madeiro mal agourado”, a “árvore fatal”, a “árvore de ignomínia”; numa palavra: o suplício da escravaria. Mandou El-Rei Tarquínio crucificar os cadáveres dos cidadãos que, para se esquivarem a trabalhar na obra dos canos de Roma, se tinham suicidado; Graco inflige a infâmia da crucificação ao seu adversário Públio Pompílio; tem Sêneca para si que esse opróbrio pertence ao número dos males de que é lícito a qualquer o precaver-se por meio de morte voluntária; Cícero, orando contra Verres, exprime a respeito da cruz de Gávio o maior horror à cruz: “Que oprobriosa não é uma condenação pública! Uma confiscação! Uma expulsão! Contudo, por entre tamanhas calamidades, um como vestígio conservamos ainda de liberdade; e a morte, a própria morte, quando nos chega, recebemo-la libertos de todas as peias. Sim; mas o carrasco, o véu da cabeça, o nome da cruz, essas últimas desonras, não venham poluir um cidadão romano; não só não lhe maculem o corpo, mas nem sequer o pensamento.” Refere Plutarco algures, que ainda no seu tempo era uso levar-se  processionalmente e em grande pompa um cão pregado numa cruz, em memória da tomada do Capitólio, em que os cães adormeceram.

Por todos esses pormenores se fica percebendo isso que São Paulo há de vir a chamar o escândalo e a loucura da cruz. Minúcio Félix increpa aos idólatras os deuses deles, engenhados talvez de algum troço de pira, ou de algum fragmento da árvore de ignomínia. Por sua vez assacam os idólatras aos cristãos a insigne demência de adorarem um Deus morto em cadafalso; e os judeus, acorrentados sempre à esterilidade da letra, entendem que não podia ser Filho de Deus aquele que assim padeceu um suplício amaldiçoado do próprio Deus.

E não obstante, era pelo mesmo tempo pressentido de judeus e pagãos este mistério da cruz. Já, muito antes de Cristo, uns e outros oravam pelo sinal da cruz. Por qualquer forma que se encare, é em toda a parte aquele sinal a atitude mesma da oração. Jacó, figura antecipada do Messias, põe em cruz os braços ao invocar para os dois filhos de José as bênçãos do céu: coloca a mão direita na cabeça do que lhe está à esquerda, e a esquerda na do que lhe fica à direita; e naquela postura, observa Tertuliano, formavam cruz os braços do patriarca, e anunciavam as bênçãos que do Crucificado haviam de baixar. No mais travado da peleja contra os amalecitas, sobe Moisés silencioso até ao monte; e aí, de pé, de mãos abertas, e braços estendidos, como um vivo sinal da cruz, faz a sua oração, e ficam vencedores os hebreus. Naquele pelejar pelo Senhor contra Amalec iam já figuradas as batalhas do Verbo encarnado contra Satanás, inimigo daquela mesma cruz que o havia de vencer.

É o próprio Jesus Cristo quem nos ensina a significação da serpente de bronze enroscada à cruz no deserto, e cuja simples vista curava da baba das serpentes: “Assim como Moisés elevou no deserto a serpente, assim também é mister que seja elevado o Filho do Homem, para que todo aquele que nele acreditar não pereça, mas alcance a vida eterna.”

Também no Templo se fazia o sinal da cruz. Elevava primeiramente o sacerdote a vítima do sacrifício; inclinava-a depois ao Oriente, e ao Ocidente. Assim também abençoavam ao povo os sacerdotes. O sacerdócio cristão só teve de acrescentar as augustas palavras, que, juntas ao sinal da cruz, resumem em si o Cristianismo inteiro: Em NOME do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

Nos escritos de Ezequiel aparece um personagem misterioso, que recebe ordem de atravessar Jerusalém, maculada de abominações: há de ir assinalando, com o sinal T na fronte, os que se doerem das iniquidades públicas; esses serão salvos; e os outros hão de morrer. Aí está claramente expressa a cruz e a sua virtude. Por essa forma, dizem os Santos Padres, tem de ser salvo o homem que assinalar a fronte com o sinal da salvação, horrorizando-se com os crimes que esse mesmo sinal proíbe.

É em feitio de cruz, e com os braços estendidos, que Sansão vinga Israel; que Davi implora auxílio contra seu filho parricida, e contra as rebeldias de seus vassalos; que Salomão agradece a Deus o ter logrado concluir o Templo, dizendo-lhe: Senhor, atentai na minha súplica. E assim é também que todos os moradores de Israel invocam a Deus, em presença do vitorioso Senaqueribe, e são despachados: “Estendendo as mãos, ergueram-nas ao céu.”

Os pagãos ao adorarem levavam à boca a mão direita, e beijavam-na; mas primeiramente formava aquela mão o sinal misterioso com o cruzamento do indicador sobre o polegar. Nos casos solenes oravam, ao modo dos judeus, com as mãos levantadas para o céu, ou cruzadas no peito. Isso fez Bruto ao ouvir narrar a morte de Lucrécia. Na riba do mar, Anquises, de mão alçadas, invoca os deuses sumos. Campeava em Roma antiga certa estátua da Piedade pública, tendo os braços em cruz como Moisés. Em todos os monumentos dos vários povos se rastreiam provas e pressentimentos de mistério da cruz.

Aplica Santo Agostinho à cruz as palavras de São Paulo, em que este deseja que os fiéis se compenetrem da largura, da altura, e da profundidade do mistério de Jesus Cristo. A largura da cruz é a extensão do afeto que devemos, sem distinção de amigos ou inimigos, a todos aqueles por quem, assim como por nós, morreu Jesus Cristo; do seu comprimento devemos aprender paciência contra as adversidades; a sua altura é o ímpeto que tem de alar-nos acima de todas as misérias terrestres, a fim de entrarmos na eterna paz; e a fundura ignota dos decretos de Deus, resolvido em salvar o mundo, a quem as demasias do saber tinham perdido, e a quem a loucura da cruz ia resgatar.

Mais um tempo, e tudo ficará patente; hão de os homens saber porque assim estava destinado àquela cruz ignominiosa o assinalar o seu vestígio em tantos atos grandes e essenciais da vida, e o oferecer-se como gesto natural da alma na presença de Deus. Dos pés daquela cruz vai surgir o exército dos mártires, e pelo sinal da cruz abalançar-se à conquista do mundo.

“Oramos de mãos erguidas, dizia Tertuliano, porque as temos inocentes; de cabeça descoberta, por não termos de que nos envergonhar; e oramos sem que ninguém nos sugira palavras, porque ali quem ora é o nosso coração. Suplicamos para todos os imperantes vida longa, segurança doméstica, valor nos exércitos, fidelidade no Senado, honestidade nos povos, paz no mundo, e tudo, em suma, que pode desejar um homem e um imperante.” E ao circo arrojavam os imperadores romanos esses mesmos que assim oravam; e eles lá morriam, sem deixar de orar pelos seus algozes; e essas mortes eram os únicos milagres que demonstravam o poder da cruz. Uma vez, reinando Deocleciano, encheu-se a arena do anfiteatro com fiéis de Cristo. De braços em cruz, de olhos no céu, ali se ficaram imóveis, sem mostrar pavor, sem proferir palavra. Tremiam de pena os espectadores; de terror os juízes. Soltam-se as feras; lá se precipitam entre rugidos! E todo o povo presencia atônito um subitâneo refrear de tamanhos ímpetos; e vê que todas à uma ficaram pasmadas, como opressas, perante um mancebo de vinte anos, que ali, sereno, a meio circo, de braços em cruz, se entregava todo a Jesus Cristo, e nem sequer pensava em feras, em povo, em morte! Noutra ocasião (e foi também em Roma) uma condenada, virgem de treze primaveras, por nome Inês, entrou, toda ela serenidade e confiança, ao fogaréu da pira. Estendeu as mãos, bendizendo a Cristo, que a sabia livrar das máculas do demônio; e logo foram vistas as chamas afastar-se de Inês, rugindo e silvando para os carrascos que a tinham aceso. Quis Deus que prodígios de igual valia manifestassem, a milhares, a virtude do sacrifício de Jesus. Multiplicou-os, sem empecer aos seus mártires, e por misericórdia para com os algozes; e assim foi que por três longos séculos aprendeu o mundo a fazer o sinal da cruz.
(Louis Veuillot, em Vida de Jesus)