quarta-feira, 31 de agosto de 2016

245ª Nota - Do desejo da vida eterna e quantos bens estão prometidos aos que combatem



Hás de passar ainda por muitas provações na terra e ser exercitado em muitas coisas. Consolações se te darão de vez em quando, mas plena satisfação não poderás receber. Esforça-te, pois, e tem coragem, para fazer e sofrer o que repugna à natureza. Importa que te revistas do homem novo e te transformes em outro homem. Cumpre-te fazer muitas vezes o que não queres e deixar o que queres. O que agrada aos outros, terá sucesso; o que te agrada, não se fará. O que os outros dizem, será atendido, o que tu dizes, será desprezado. Pedirão os outros e receberão; tu pedirás, e não alcançarás.

Serão grandes os outros na boca dos homens, mas de ti nem se dirá palavra. Os outros serão encarregados de diversas comissões, e tu não serás julgado capaz de coisa alguma. Com isso se contristará, às vezes, a natureza; mas muito ganharás, se o sofreres calado. Nestas e outras coisas semelhantes costuma ser provado o servo fiel do Senhor, para ver como sabe negar e mortificar-se em tudo. Dificilmente haverá coisa em que mais te seja preciso morrer a ti mesmo, do que ver e sofrer o que é contrário à tua vontade, mormente quando te mandam fazer coisas que te parecem inúteis ou desarrazoadas. É porque não ousas resistir à autoridade do superior, sob cujo governo estás, duro te parece andar à vontade de outrem e deixar de todo o teu próprio parecer.

Mas considera, filho, o fruto destes trabalhos, o fim breve e o prêmio excessivamente grande, e não te serão molestos, mas acharás neles consolo para teus sofrimentos. Pois por um pequeno desejo que agora sacrificas, tua vontade será sempre satisfeita no Céu, pois ali acharás tudo que quiseres, tudo o podes desejar. Ali possuirás todo o bem, sem medo de o perder. Ali tua vontade, sempre unida com a minha, nada desejará fora de mim, nada que te seja próprio. Ali ninguém te fará oposição ou de ti se queixará, ninguém te causará estorvo ou contrariedades: antes tudo quanto desejares já estará presente, para preencher e satisfazer plenamente todos os teus desejos. Ali te darei a glória pela injúria padecida, uma túnica de honra pela tristeza, pela escolha do ínfimo lugar, um trono em meu reino para sempre. Ali brilhará o fruto da obediência, alegrar-se-á a austera penitência e será gloriosamente coroada a sujeição humilde.

Sujeita-te, pois, agora humildemente à vontade de todos, sem te importar quem foi que tal disse ou mandou. Mas cuida muito em acolher de bom grado qualquer pedido ou aceno, seja de teu superior, ou embora de teu igual ou inferior, e trata de o cumprir com sincera vontade. Busque um isto, outro aquilo; glorie-se este numa coisa, aquele em outra e receba mil louvores; tu, porém, não te deleites numa nem noutra coisa, mas no desprezo de ti mesmo e na minha vontade e glória. Este deve ser o teu desejo: que tanto na vida como na morte, Deus seja sempre por ti glorificado. 

(Imitação de Cristo, Venerável Tomás de Kempis)

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

244ª Nota - O rosto de Nossa Senhora


A cabeça da Virgem de Guadalupe é uma das grandes obras-primas de expressão artística facial. Desde à fineza da forma, à simplicidade da execução, ao matiz e ao colorido, existem poucos casos que se lhe comparem entre as obras-primas do mundo. Dos retratos que tenho observado na minha vida, não existe nenhum executado de tal maneira.

As aproximações fotográficas com “luz infravermelha” não demonstram preparo algum, características que por si mesmo faz da pintura algo de fantástico.

O tom da cútis do rosto e das mãos é definitivamente indígena e, a uma distância de aproximadamente um metro, parece ter um tom quase verde cinzento (oliva). Examinados de perto, com uma lupa, os pigmentos dão a impressão de que variam do cinza nas sombras profundas para o branco brilhante na região mais clara das bochechas.

A ausência de emplastro é evidente não só na aproximação com o infravermelho, mas  também nas tomadas fotográficas com luz visível. Por isso, vêem-se vazios os interstícios no tecido da tela. É de grande interesse a parte mais clara da bochecha, feita com um pigmento desconhecido, que aparece praticamente “aglutinado” no tosco tecido da tilma. À primeira vista apareceria embaçado no infravermelho e, por isso, semitransparente à radiação infravermelha. Se o brilho do pigmento da bochecha fosse de grossas camadas reais de cal ou de gesso, é absolutamente certo que as grossas camadas aplicadas na tela se teriam gretado com o passar dos séculos.

As áreas sombreadas em tonalidades cinzentas, como as do lado direito do rosto (junto ao nariz), a da boca e da covinha sob a boca estão sutilmente pintadas e a grosseira trama do ayate sobressai nelas.

A formosa expressão de meditação é constituída por simples linhas escuras e finas, que desenham as sobrancelhas, a silhueta do nariz e a boca.

Nas fotografias tiradas de perto, o rosto aparece desprovido de perspectiva, achatado e de tosca execução. Mas, contemplado a certa distância, surge nele uma elegante profundidade.

Uma das maravilhas e inexplicáveis técnicas empregadas para dar realismo à pintura se refere à forma como se aproveita a tilma, não preparada, para dar ao rosto uma profundidade e aparência de vida. Isto é evidente, principalmente na boca onde uma falha do fio do ayate sobressai do plano deste e continua à perfeição no contorno superior do lábio. Outras toscas imperfeições do mesmo tipo aparecem sob a área clara da bochecha esquerda e à direita e embaixo do olho direito. Considero impossível que qualquer pintor humano tenha escolhido uma tilma com falhas no tecido e situadas de tal forma que acentuassem as luzes e as sombras para dar um realismo semelhante. É muito mais do que inconcebível a possibilidade de uma coincidência.

Conforme se vê nas fotografias infravermelhas, os olhos e as sombras em torno do nariz são simples linhas escuras não traçadas de antemão na tela, mas são parte do mesmo pigmento do rosto. Vendo a pintura de perto, as partes mais claras das pálpebras são tênues que parecem inexistir.

O preto dos olhos e dos cabelos não pode ser óxido de ferro, nem outro pigmento que se torna cinza com o tempo, porque neles a pintura não está descascada nem desbotada.

O que há de verdadeiramente extraordinário no rosto e nas mãos é a qualidade de tom, que é um efeito físico da luz refletida, tanto pela tosca tilma como pela própria pintura.

É um fato indiscutível que, se olharmos de perto o relevo e o colorido do rosto, ficamos decepcionados. Mas, contemplando-o a uns metros, a cútis adquire um matiz que poderíamos qualificar de verde-oliva ou verde-cinza. Até parece que o cinza e o aparentemente “aglutinado” pigmento branco do rosto e das mãos combinam com a superfície tosca da tilma para “recolher” a luz e refletir ao longe o tom oliva da cútis. Parece ser impossível conseguir semelhante técnica por mãos humanas, embora a natureza no-la ofereça com frequência na coloração das plumas das aves, nas escamas das mariposas e nos élitros dos coleópteros brilhantes coloridos. Tais cores obedecem à refração da luz e não dependem da absorção ou reflexão da luz por parte dos pigmentos moleculares, senão do relevo da superfície das plumas e das escamas das mariposas.

Este mesmo efeito é evidente no rosto e é observado sem dificuldade quando o espectador se afasta lentamente da pintura, até que os detalhes das imperfeições do tecido do ayate já não fiquem visíveis.

Numa distância em que o relevo e o pigmento da superfície se fundem, brota como por encanto a avassaladora beleza da Senhora morena. De repente, a expressão do rosto aparece reverente, embora gozadora, índia embora europeia, de textura oliva, embora com matizes brancos. A impressão que dá é a de um rosto tão áspero como os desertos do México e, também, tão gentil como o de uma noiva na sua noite de núpcias. É a face que estremecia a cristandade da Europa bizantina com o naturalismo subjugante do Novo Mundo indígena: um adequado símbolo para todos os povos de um grande continente.

CONCLUSÃO

O rosto inteiro é feito com pigmentos desconhecidos, misturados de tal maneira que aproveitam as qualidades da difração da luz causada pela tela sem preparo, para dar o matiz oliva à cútis. Além disso, a técnica se serve das imperfeições do tecido da tilma para dar uma grande profundidade à pintura.

O rosto é de tal beleza e de execução tão singular, que se torna inexplicável para o estado atual da ciência.
(J.J.Benítez, in O MISTÉRIO DA VIRGEM DE GUADALUPE, 1982)

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

243ª Nota - Reflexões sobre a liturgia


Nas suas celebradas Instituições Litúrgicas (tom. 2, pág. 10, ed. 1878), Dom Guéranger escreve que se fosse admissível contestar leis litúrgicas, “…seguir-se-ia que a Igreja errara numa disciplina geral, o que é herético.” Na Quo Graviora (1833), o Papa Gregório XVI pergunta retoricamente: “Poderia a Igreja, que é a coluna e o fundamento da verdade [1 Tim. 3,15] e manifestamente recebe sem interrupção do Espírito Santo o ensinamento de toda a verdade, ordenar, conceder ou permitir o que trouxesse dano às almas e desprezo ou prejuízo a um sacramento instituído por Cristo?” Todos os teólogos estão de acordo que o Concílio de Trento e a Auctorem Fidei do Papa Pio VI ensinam a infalibilidade das disposições litúrgicas da Igreja, no sentido de que estas, mesmo quando meramente aprovadas e não obrigatórias, não têm como ser infiéis à sã doutrina ou à missão santificadora da Igreja.
(Excerto de um artigo de John Daly, postado no Acies Ordinata)
Sendo assim, perguntamos: o Concílio Vaticano II foi um verdadeiro concílio da Igreja? a igreja conciliar de João XXIII a Francisco Bergoglio é a verdadeira Igreja de Cristo-Rei?

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

242ª Nota - Renovação Carismática é católica?


Qual a origem do carismatismo “católico”?
O carismatismo “católico” nasceu nos Estados Unidos, em Pittsburgh (Pensilvânia), em 20 de fevereiro de 1967, dia em que dois católicos da Universidade de Duquesne receberam a imposição das mãos, em um grupo de oração dirigido por uma presbiteriana, e começaram a falar em línguas. Utilizaram, em seguida, o mesmo rito para transmitir a outros católicos os poderes assim recebidos.

Qual o efeito do rito pentecostal sobre os primeiros católicos que o receberam?
A imposição das mãos produziu sobre os estudantes católicos da Universidade de Duquesne os mesmos efeitos bizarros que sobre os protestantes. Um dos dois contou: “Minha alegria era tão grande que não podia fazer nada além de rir, estendido por terra.” Um outro: “O sentimento que eu tinha da presença de Deus era tão forte que me recordo de ter ficado sentado uma meia hora na capela, rindo de alegria no pensamento do amor de Deus.” Um terceiro: “Desde que me impuseram as mãos, pareceu-me que todo meu peito iria estourar. Meus lábios começaram a tremer e meu espírito a girar em turbilhão. Depois, eu sorria beatamente, não podia me impedir de fazer isso.”

O que manifestam essas reações?
Essas reações chocantes revelam uma intervenção demoníaca. Enquanto o Espírito Santo faz reinar a ordem e a discrição, o espírito demoníaco, mesmo quando se disfarça em anjo de luz, trai-se geralmente por alguma manifestação grotesca {O místico inglês do século XIV, autor da obra “Le Nuage de l’inconnaissance” [um dos livros de base dos noviços cartuxos], escreveu assim: “Há, com efeito, esse iludidos todos saturados de manias incomuns em sua atitude exterior. [(...) Alguns] não cessam de sorrir ou de rir a toda palavra que pronunciam, como meninotas de riso solto ou como jograis a quem falta postura e que se entregam a todas as palhaçadas. Todavia, a atitude que deveriam conservar seria a de uma perfeita decência, com muita ponderação e com muita reserva em sua postura e na expressão de sua alegria. Não quero dizer que esses hábitos pouco decentes sejam, por si mesmos, grandes crimes; nem que aqueles que os adquirem sejam grandes pecadores; mas se esses hábitos tomam conta de um homem tão fortemente que ele não possa se desfazer deles quando quiser, eles são sinais[...] É por eles que o operário espiritual manifestará o que é a sua obra. [...] Será o demônio, seu inimigo espiritual, que os fará experimentar um fogo interior cuja causa é seu orgulho, a fraqueza da carne e a inquietude de seu espírito. Mas imaginarão, erroneamente, sentir o fogo do amor e obtê-lo da Graça e da Bondade do Espírito Santo. [...] A ilusão que procede desse falso sentimento, e do falso conhecimento que a acompanha, reveste formas variadas e estranhas, conforme a diversidade dos estados e das condições particulares daqueles que sucumbem a ela.”}.

A Renovação Carismática não realiza um certo bem trazendo de volta ao Catolicismo algumas almas, e mantendo a piedade em outras?

O demônio, que enxerga a longo prazo, sabe perder um pouco para ganhar muito. É o ensinamento da Bem-Aventurada Maria da Encarnação: “Os êxtases, as visões e as revelações não são de jeito nenhum um argumento inconteste da permanência ou da assistência de Deus em uma alma. Quantos se viram que foram enganados com esses tipos de visões? Embora tenham sido a causa da conversão ou mesmo da salvação de algumas almas, é um estratagema do espírito maligno que fica contente em perder um pouco para ganhar muito”.
(Padre Mathias Gaudron, FSSPX, Catecismo Católico da Crise da Igreja, 2011)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

241ª Nota - Marxismo, Evolucionismo e Existencialismo: loucuras modernas


Lembra-me aqui um manual marxista que me chegou às mãos, e em que o autor, para combater o que ele chamava de espiritualismo, prova a não existência da liberdade com um argumento deste quilate: um orador tem necessidade de beber água porque a prolongada eloquência seca a garganta. Bebe-a, então, por esse motivo físico e fisiológico, e não por livre arbítrio. Não me consta que tenha existido algum autor tão desvairadamente espiritualista que tenha chegado a negar a existência da garganta. O orador bebe água, efetivamente, porque a garganta secou. Esta explicação se enquadra bem em qualquer doutrina filosófica e em qualquer religião. É uma explicação sucinta e clara. Mas o que já não é tão claro, sobretudo para um marxista, é o motivo da eloquência. E se nós adicionarmos à pregação marxista as notas de fervor e de patético que costumam acompanhar a eloquência, ficará cada vez mais misteriosa a atitude daquele indivíduo que agora, num momento de clara racionalidade, bebe o seu copo d’água. O marxismo, como ninguém ignora, é uma grande aventura que tem por objetivo purgar a história do homem do espírito de aventura. Será a última aventura para acabar com a aventura, o último ímpeto de fervor para matar o fervor, o último esforço de heroísmo.
(...)
O evolucionismo é também uma doutrina nascida da mesma incapacidade de compreender, de suportar o aspecto de aventura que põe um frêmito na história do mundo. A variedade das espécies aparece diante desse tipo de observador como uma intolerável desordem. Sendo admissível que se busque, com o critério da economia de causas, a melhor explicação da diversidade, o evolucionista leva ao paroxismo essa razoável tendência, com a insensata ideia de abafar no nascedouro o que lhe parece ser um prurido de desordem. Ele quer inculcar ao universo uma disciplina de internato, e sonha pôr em ordem de marcha, em fila, todas as coisas do universo, desde o caramujo até o descobridor do pólo Sul. O existencialista, ao contrário, pretende libertar o homem das concatenações que o princípio da economia lhe impõe, deixando-o sempre no limiar de uma aventura. O homem não tem natureza: está sempre na origem; está sempre nascendo, úmido sempre das águas genesíacas. Será nessa mensagem que tanto valoriza o concreto, a experiência própria, que eu deveria buscar minhas lições de abismo?

(Gustavo Corção, excertos de Lições de Abismo)

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

240ª Nota - Número semelhante de homens e mulheres



Analisemos agora um fato que – na opinião de determinados autores – faz pressentir a monogamia como forma natural do matrimônio. Trata-se da significativa circunstância de que a natureza produz varões e mulheres quase no mesmo número. Esta afirmação não está em conformidade com o que comumente se crê, ou seja: que o número de mulheres é muito superior ao de homens (o que seria um argumento em favor da poliginia, pois se tal ocorresse e esta não fosse admitida, de antemão se estaria condenando grande parte do sexo feminino a não poder exercer o direito da pessoa humana a fundar uma família).

Resumamos os dados estatísticos que sobre este assunto nos oferece Landry, em seu “Tratado de Demografia” (Adolphe Landry, Traité de démographie, Félix Alcan, Paris, 1934, págs. 123-132): Nascem cerca de 105 meninos para cada 100 meninas, mas, sendo o índice de mortalidade dos primeiros superior, logo se equilibram os dois sexos, que se mantêm emparelhados durante a adolescência e a juventude, e só a partir dos 35 anos aproximadamente é que começa a ser superior o número de mulheres. Esta maioria do “sexo fraco” vai aumentando à medida que a idade avança, de modo que, por volta dos 90 anos, nos defrontamos com 25 mulheres para cada 10 homens, sendo mulheres quase todas as pessoas que chegam aos 100 anos.

Fixemo-nos no fato interessante de que é a partir dos 35 anos que o número de mulheres começa a sobrepujar o de varões. Isto é: só a partir de uma idade em que as mulheres começam a ser menos atrativas e menos aptas para o matrimônio é que começa a haver mais mulheres do que homens. Dir-se-ia que desde os 15 e até os 35 anos, a natureza procura manter uma igualdade numérica dos sexos, como que facilitando ou solicitando o emparelhamento.

Estendamo-nos um pouco mais sobre estes dados, que deitam por terra a crença, tão difundida quanto distante da realidade, acerca do excessivo número de mulheres em relação ao de homens.

Na Espanha, em 1960, de um total de 30.530.700 habitantes, 15.714.100 eram mulheres, o que significa 1.060 mulheres para cada 1.000 homens (Anuário Estadístico de España, 1965).

No entanto, não se pense que o excedente é sempre a favor do sexo feminino. Depende das circunstâncias que incidem sobre os movimentos de população. Assim, no ano de 1940, enquanto na Bélgica havia 1.028 mulheres para cada 1.000 homens, nos Estados Unidos havia somente 989 mulheres para cada 1.000 homens, o que explica pelo fato de naquele país ser notavelmente mais elevado o número de emigrantes varões. O mesmo ocorre – segundo Landry – nos países em que as mulheres, por causas religiosas ou sociais, são pior tratadas: na Índia, por exemplo, em 1941 havia 935 mulheres para cada 1.000 homens.

Observemos que o que verdadeiramente tem interesse é a semelhança entre o número de homens e mulheres. Pouco sentido teriam aqui as exatidões matemáticas, dado que nem todos os homens e mulheres – como indivíduos determinados – estão chamados ao matrimônio, algumas vezes por enfermidade, outras por vocação superior, outras por razões familiares etc., razões que podem fazer desaconselhável para uma pessoa concreta o que é a lei comum para a espécie.

Vejamos também outro fato muito significativo; o incremento do número de varões que se produz depois das guerras. Que fatores supraindividuais fazem com que na grande família humana se movam ocultos recursos para que, com essa maior chegada de varões, se compensem as mortes da guerra? A realidade é que não são conhecidos esses mecanismos, mas trata-se de um fato comprovado. Na Bélgica, por exemplo, o “coeficiente de masculinidade”, que, antes da guerra de 1914, era de 50,9% (porcentagem de varões no total de homens e mulheres), subiu para 51,58% em 1919 e 51,45% em 1920, descendo depois paulatinamente, até situar-se em 1929 ao redor de 50,98%, praticamente a mesma cifra anterior à guerra. Essa mesma tendência se observou em outros países que intervieram no conflito, repetindo-se o fenômeno ao final da segunda guerra mundial. Outro dado estatístico que nos indica como a natureza parece tender ao emparelhamento de varões e mulheres.

Tudo o que até aqui se indicou não obsta a que seja ligeiramente superior o número de mulheres em idade núbil sobre o de homens. E a explicação é simples: o “circuito” matrimonial inclui um componente de idade que é maior na mulher do que no homem, dado que a lei – reconhecendo o desenvolvimento mais precoce daquela – concede à mulher a possibilidade de casar-se dois ou três anos antes que o varão. Por isso, supondo que a idade matrimonial nas mulheres seja – em média – três anos inferior à dos varões, se num país nascem anualmente, admitamos, 100.000 meninos e 100.000 meninas, ao passar os anos, as mulheres aptas para o matrimônio serão 300.000 mais que homens.

Recordemos, finalmente, que à equiparação em número de varões e mulheres (facilitando a possibilidade de contrair matrimônio) vieram somar-se os favoráveis efeitos da revolução industrial. Efetivamente, enquanto na economia puramente agrícola os filhos mais novos estavam destinados a permanecer solteiros (a herança não podia ser dividida em tantas parcelas quantas fossem os filhos, posto que só dava para uma família), na economia moderna o trabalho é meio e condição suficiente para poder fundar e sustentar um lar, tendo razão Schreiber ao escrever: “Com a industrialização se apresenta pela primeira vez na história da humanidade a possibilidade para o indivíduo de ganhar a vida e poder fundar uma família à base unicamente de seu esforço”.

Já não é condição imprescindível possuir terras para cultivar. Estamos diante do fato inegável de que a industrialização e o regime de salário facilitaram a um grande número de pessoas poder exercer esse direito fundamental da pessoa humana, que é o de constituir uma família.

(Luis Riesgo Menguez, Doutor em Filosofia pela Universidade de Madri/Espanha, in A Configuração da Família à Luz Exclusiva da Razão Natural, 1970)

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

239ª Nota - Sociedade em Pânico


A grande angústia de nosso tempo é um sentimento de excomunhão. Não sentindo em si uma existência própria, uma atividade própria, o homem precisa desesperadamente de um apoio exterior. Um andaime que lhe falte, ele logo se sente desvairadamente infeliz, como quem, num pesadelo, se achasse numa sala onde todo o mundo se divertisse em chinês. É o relógio parado de Papini, que só está certo quando todos os outros fazem o favor de vir ao seu encontro; mas que logo fica para trás, morto, quando o alegre turbilhão de relógios vivos passa, seguindo a dança das horas. Desajustado, não compreendendo o chinês em que os outros riem e cantam, o excluído só pode fazer uma coisa que não exige sociabilidade: chorar. E olhe lá!

O resultado aí está: uma sociedade em pânico, que tudo aposta na estridência e na visibilidade; uma sociedade de aterrorizados que pisa os pobres, os pequeninos, os doentes, na fúria de atingir um estrado em praça pública, de onde possam fazer, uns aos outros, sinais febris e sem significação.

(Gustavo Corção, excerto de Lições de Abismo)

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

238ª Nota - Protestantismo não é Cristianismo


DIZEM os protestantes que são cristãos, que querem o cristianismo puro. E eu lhes digo que o protestantismo não é cristianismo puro, nem cristianismo de espécie alguma; é pseudocristianismo, um cristianismo falso. Nem sequer tem os protestantes direito de se chamarem cristãos.

Há, não o nego, protestantes de boa fé, os quais, equivocados, serão cristãos, e crerão em Jesus Cristo e na sua doutrina, e não refletirão sobre as origens do protestantismo. Não falo desta classe de protestantes que, como se vê, são protestantes por equivocação, por engano e ignorância. Falo do protestantismo em si, e afirmo sem receio que o protestantismo não é cristianismo, nem puro, como eles imaginam, nem impuro, nem de espécie alguma.

A IGREJA ROMANA ANTES DE 1521 – Reflita alguns instantes, meu caro amigo, e se é realmente amante da verdade, preste atenção ao que lhe vou dizer. Antes de 1521, a Igreja Romana era igreja verdadeira cristã, e desta verdade ninguém duvidava em todo o mundo. Ela apresentava sua sucessão clara e sem interrupção desde São Pedro, São Lino, Santo Anacleto, e assim toda a série dos Papas e sucessores de São Pedro até Leão X. Ninguém se lembrava de protestar, a ninguém ocorria sequer a ideia de duvidar. Todos aqueles que queriam ser cristãos sabiam perfeitamente que a Igreja Romana era a verdadeira Igreja, a religião cristã.

O GRANDE ARGUMENTO – O grande argumento de Santo Agostinho contra os hereges Donatistas era este belíssimo: “Contai os sacerdotes desde a mesma Sé de Pedro, examinai como se foram sucedendo sem interrupção: esta é a pedra que não vencem as soberbas portas (os soberbos poderes) do inferno, isto é, esta é a Igreja de Cristo, da qual disso o mesmo Jesus Cristo que não a venceriam os poderes do inferno”. E acrescentava: “O fato que me prende e retém na Igreja Católica é a sucessão de sacerdotes, que nunca foi interrompida desde a mesma Sé de Pedro Apóstolo até o presente episcopado”. (Queria dizer, desde São Pedro até o Pontífice que no seu tempo regia a Igreja). E como Santo Agostinho tem pensado e pensam sempre todos os cristãos, a saber, que a Igreja verdadeira vem dos Apóstolos. Claro está que assim é; de outra maneira não será a Igreja de Cristo, mas outra qualquer. Como porém não pode haver duas Igrejas de Cristo, aquela outra será forçosamente falsa.

ONDE ESTAVAM OS PROTESTANTES, ANTES DO SÉCULO XVI? – Onde estava Lutero? Onde Zuinglio? Onde estava Calvino? Onde estava Henrique VIII e todos os demais reformadores?... Eles mesmos, até o dia da sua rebelião, eram católicos, estavam na Igreja Católica, e por isso mesmo eram cristãos. E de repente, a alturas tantas, que havia de dar na veneta a esses homens escandalosos? Por motivo de melindres, de enfados e de soberbas, emproa-se Lutero e diz com altivez: “Eu não obedeço à Igreja Católica, separo-me dela! Eu, Martinho Lutero, digo que esse cristianismo não é o verdadeiro! Eu, Martinho Lutero, descobri que essa Igreja Católica, à qual pertence todo o mundo cristão, não é cristã!” E sem mais, o frade apóstata se separa da Igreja Católica e da videira verdadeira, que trazia sua origem desde os Apóstolos até então havia existido. Atrás de Lutero se foram precipitando Zuinglio, que era um homem perdido e fora escorraçado de sua paróquia pela sua libertinagem; um Calvino, tipo orgulhoso, marcado com o ferrete de ignominia por certo delito nefando; um Henrique VIII, homem de sete mulheres, adúltero e uxoricida; e Carlostadio, de quem dizia Melanchton  que era homem brutal, ignorante, mais amigo das tabernas que dos livros; e Ecolampadio, e Osiandro, e Bucero, e Capitão, e Farel e Beza... todos eles conhecidos pela sua vida desregrada e péssimos costumes.

CONSIDERE SINCERAMENTE ESTE APOSTOLADO – Porque se o amigo chega a perceber a força deste argumento, verá como basta para pulverizar o protestantismo. O protestantismo não é religião cristã. Se o fosse, proviria dos Apóstolos, e por meio deles havia de mostrar-nos que está unido a Jesus Cristo. O protestantismo porém tem a data do seu nascimento, que é o ano de 1521. O protestantismo vem de Lutero, e Lutero não é Jesus Cristo; vem de Zuinglio, e Zuinglio não é Jesus Cristo; vem de Henrique VIII, e Henrique VIII não é Jesus Cristo! Meu Deus, que diferentes de Jesus Cristo são todos estes monstros infames, e quão contrários a Ele!... Os protestantes são Luteranos, Calvinistas, Anglicanos, Zuinglianos, Metodistas, Batistas, tudo o que quiserem, Cristãos porém de nenhum modo. Apostólicos? DE NENHUMA MANEIRA!...

(Padre Amando Adriano Lochu, S.J.,  in Raios de Sol, 1933.)

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

237ª Nota - Lições de Abismo


“Agora eu vejo que é com amor que a gente conhece as coisas, separando-as, distinguindo-as, mas trazendo-as todas unidas e banhadas na mesma atmosfera. E se não existe amor? Então o universo inteiro se torna um heteróclito amontoado de escombros.”
(Gustavo Corção, excerto de seu romance “Lições de Abismo”)

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

236ª Nota - Padre Jacques Hamel é mártir?



O padre Jacques Hamel, como todos os fieis adeptos do Vaticano II, estava ativamente comprometido com o “diálogo inter-religioso” com os negadores da Santíssima Trindade e da divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Como se sabe, a mesquita da localidade de Saint Etienne du Rouvray (Alta Normandia) estava construída sobre uma parcela de terreno que no ano de 2000 foi doada pela paróquia de Santa Teresa. Naquela época, o pároco titular da igreja de Saint Etienne de Rouvray era Jacques Hamel, cargo que exerceu até a sua jubilação em 2008, e por tanto o último responsável da decisão de ceder à comunidade muçulmana os terrenos de propriedade de sua paróquia para a construção da mesquita, que adotou o nome de “Yahya”.

Pois bem.

O mártir é perseguido e morto por ódio à fé, morre passivamente (sem resistir) e por guardar a fé (amor a Jesus Cristo). Guardar a fé pode significar quer seja declarada, quer seja para defender as obras da fé (como São João Batista que morreu por denunciar o adultério de Herodes, ou Santa Maria Goretti que morreu por defender sua virtude).

Defender a fé é algo objetivo. É defender a verdadeira fé e não o que cada qual crê que seja a fé.

Santo Agostinho: “Não são mártires os que padecem pela iniquidade e por dividir a unidade cristã”.

O mártir dá testemunho, de fato pelo sangue, da verdade e da fé professada durante a sua vida e no momento de sua morte.

Enfim, não podemos reconhecer em um modernista, inclusive se foi morto enquanto cristão, um mártir de fé, especialmente no sentido estrito e canônico, a não ser que nos convertamos em seguidores do wojitiliano “ecumentismo do martírio”.

(Extraído do blogue RadioCristiandad)

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

235ª Nota - Contra Descartes



DESCARTES ABANDONOU O PROPÓSITO DE DUVIDAR ANTES DE OBSERVÁ-LO

A primeira digna repreensão está em que quem estabeleceu duvidar sobre todas as coisas para perceber a verdade, para melhor duvidar decretou ter as coisas não já por incertas senão por completamente falsas. E isto contraria manifestamente seu propósito. Porque quem tem uma coisa por falsa, não duvida sobre ela mais que quem a tem por verdadeira, e afirma que é falsa. Porém quem assente, crê e afirma, não duvida; duvida, ao contrário, quem retém seu assentimento e tem por incerto se a coisa é verdadeira ou falsa.


(Pedro Daniel Huet, bispo designado de Soissons, em “Censura da Filosofía Cartesiana”, 1690)

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

234ª Nota - O sinal da Cruz


Sinistra e horrorosa coisa era na antiguidade a cruz! Nela se concentrara toda a infâmia dos demais suplícios. É este nos Livros Sagrados o seu caráter: “O cadáver do crucificado não há de continuar de noite pendurado no madeiro; há de ser sepulto no mesmo dia; porque todo aquele que do madeiro pender fica amaldiçoado de Deus.” Por causa dessa lei é que Isaías, falando profeticamente de Cristo, disse: “Figurou-se-nos objeto desprezível, ele, o último dos homens”; e mais adiante chama-lhe “o humilhado”. Não era pois a cruz um mero suplício, era também uma maldição. “Maldito aquele que do madeiro pender!” Daí vem o brado profético do Livro da Sabedoria: “Condenemo-lo à morte mais vil!”, brado que os judeus com tanto rancor souberam repetir nesta curta frase: “Crucificai-o!” Isto é, morra, e seja maldito. Querem que nos vilipêndios de tal suplício se acabe de destruir o que a morte só por si não lograsse destruir. Não lhes passa pela ideia poderem encontrar-se no mundo homens que blasonem ser discípulos de um crucificado!

Para os romanos é a cruz o “madeiro mal agourado”, a “árvore fatal”, a “árvore de ignomínia”; numa palavra: o suplício da escravaria. Mandou El-Rei Tarquínio crucificar os cadáveres dos cidadãos que, para se esquivarem a trabalhar na obra dos canos de Roma, se tinham suicidado; Graco inflige a infâmia da crucificação ao seu adversário Públio Pompílio; tem Sêneca para si que esse opróbrio pertence ao número dos males de que é lícito a qualquer o precaver-se por meio de morte voluntária; Cícero, orando contra Verres, exprime a respeito da cruz de Gávio o maior horror à cruz: “Que oprobriosa não é uma condenação pública! Uma confiscação! Uma expulsão! Contudo, por entre tamanhas calamidades, um como vestígio conservamos ainda de liberdade; e a morte, a própria morte, quando nos chega, recebemo-la libertos de todas as peias. Sim; mas o carrasco, o véu da cabeça, o nome da cruz, essas últimas desonras, não venham poluir um cidadão romano; não só não lhe maculem o corpo, mas nem sequer o pensamento.” Refere Plutarco algures, que ainda no seu tempo era uso levar-se  processionalmente e em grande pompa um cão pregado numa cruz, em memória da tomada do Capitólio, em que os cães adormeceram.

Por todos esses pormenores se fica percebendo isso que São Paulo há de vir a chamar o escândalo e a loucura da cruz. Minúcio Félix increpa aos idólatras os deuses deles, engenhados talvez de algum troço de pira, ou de algum fragmento da árvore de ignomínia. Por sua vez assacam os idólatras aos cristãos a insigne demência de adorarem um Deus morto em cadafalso; e os judeus, acorrentados sempre à esterilidade da letra, entendem que não podia ser Filho de Deus aquele que assim padeceu um suplício amaldiçoado do próprio Deus.

E não obstante, era pelo mesmo tempo pressentido de judeus e pagãos este mistério da cruz. Já, muito antes de Cristo, uns e outros oravam pelo sinal da cruz. Por qualquer forma que se encare, é em toda a parte aquele sinal a atitude mesma da oração. Jacó, figura antecipada do Messias, põe em cruz os braços ao invocar para os dois filhos de José as bênçãos do céu: coloca a mão direita na cabeça do que lhe está à esquerda, e a esquerda na do que lhe fica à direita; e naquela postura, observa Tertuliano, formavam cruz os braços do patriarca, e anunciavam as bênçãos que do Crucificado haviam de baixar. No mais travado da peleja contra os amalecitas, sobe Moisés silencioso até ao monte; e aí, de pé, de mãos abertas, e braços estendidos, como um vivo sinal da cruz, faz a sua oração, e ficam vencedores os hebreus. Naquele pelejar pelo Senhor contra Amalec iam já figuradas as batalhas do Verbo encarnado contra Satanás, inimigo daquela mesma cruz que o havia de vencer.

É o próprio Jesus Cristo quem nos ensina a significação da serpente de bronze enroscada à cruz no deserto, e cuja simples vista curava da baba das serpentes: “Assim como Moisés elevou no deserto a serpente, assim também é mister que seja elevado o Filho do Homem, para que todo aquele que nele acreditar não pereça, mas alcance a vida eterna.”

Também no Templo se fazia o sinal da cruz. Elevava primeiramente o sacerdote a vítima do sacrifício; inclinava-a depois ao Oriente, e ao Ocidente. Assim também abençoavam ao povo os sacerdotes. O sacerdócio cristão só teve de acrescentar as augustas palavras, que, juntas ao sinal da cruz, resumem em si o Cristianismo inteiro: Em NOME do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

Nos escritos de Ezequiel aparece um personagem misterioso, que recebe ordem de atravessar Jerusalém, maculada de abominações: há de ir assinalando, com o sinal T na fronte, os que se doerem das iniquidades públicas; esses serão salvos; e os outros hão de morrer. Aí está claramente expressa a cruz e a sua virtude. Por essa forma, dizem os Santos Padres, tem de ser salvo o homem que assinalar a fronte com o sinal da salvação, horrorizando-se com os crimes que esse mesmo sinal proíbe.

É em feitio de cruz, e com os braços estendidos, que Sansão vinga Israel; que Davi implora auxílio contra seu filho parricida, e contra as rebeldias de seus vassalos; que Salomão agradece a Deus o ter logrado concluir o Templo, dizendo-lhe: Senhor, atentai na minha súplica. E assim é também que todos os moradores de Israel invocam a Deus, em presença do vitorioso Senaqueribe, e são despachados: “Estendendo as mãos, ergueram-nas ao céu.”

Os pagãos ao adorarem levavam à boca a mão direita, e beijavam-na; mas primeiramente formava aquela mão o sinal misterioso com o cruzamento do indicador sobre o polegar. Nos casos solenes oravam, ao modo dos judeus, com as mãos levantadas para o céu, ou cruzadas no peito. Isso fez Bruto ao ouvir narrar a morte de Lucrécia. Na riba do mar, Anquises, de mão alçadas, invoca os deuses sumos. Campeava em Roma antiga certa estátua da Piedade pública, tendo os braços em cruz como Moisés. Em todos os monumentos dos vários povos se rastreiam provas e pressentimentos de mistério da cruz.

Aplica Santo Agostinho à cruz as palavras de São Paulo, em que este deseja que os fiéis se compenetrem da largura, da altura, e da profundidade do mistério de Jesus Cristo. A largura da cruz é a extensão do afeto que devemos, sem distinção de amigos ou inimigos, a todos aqueles por quem, assim como por nós, morreu Jesus Cristo; do seu comprimento devemos aprender paciência contra as adversidades; a sua altura é o ímpeto que tem de alar-nos acima de todas as misérias terrestres, a fim de entrarmos na eterna paz; e a fundura ignota dos decretos de Deus, resolvido em salvar o mundo, a quem as demasias do saber tinham perdido, e a quem a loucura da cruz ia resgatar.

Mais um tempo, e tudo ficará patente; hão de os homens saber porque assim estava destinado àquela cruz ignominiosa o assinalar o seu vestígio em tantos atos grandes e essenciais da vida, e o oferecer-se como gesto natural da alma na presença de Deus. Dos pés daquela cruz vai surgir o exército dos mártires, e pelo sinal da cruz abalançar-se à conquista do mundo.

“Oramos de mãos erguidas, dizia Tertuliano, porque as temos inocentes; de cabeça descoberta, por não termos de que nos envergonhar; e oramos sem que ninguém nos sugira palavras, porque ali quem ora é o nosso coração. Suplicamos para todos os imperantes vida longa, segurança doméstica, valor nos exércitos, fidelidade no Senado, honestidade nos povos, paz no mundo, e tudo, em suma, que pode desejar um homem e um imperante.” E ao circo arrojavam os imperadores romanos esses mesmos que assim oravam; e eles lá morriam, sem deixar de orar pelos seus algozes; e essas mortes eram os únicos milagres que demonstravam o poder da cruz. Uma vez, reinando Deocleciano, encheu-se a arena do anfiteatro com fiéis de Cristo. De braços em cruz, de olhos no céu, ali se ficaram imóveis, sem mostrar pavor, sem proferir palavra. Tremiam de pena os espectadores; de terror os juízes. Soltam-se as feras; lá se precipitam entre rugidos! E todo o povo presencia atônito um subitâneo refrear de tamanhos ímpetos; e vê que todas à uma ficaram pasmadas, como opressas, perante um mancebo de vinte anos, que ali, sereno, a meio circo, de braços em cruz, se entregava todo a Jesus Cristo, e nem sequer pensava em feras, em povo, em morte! Noutra ocasião (e foi também em Roma) uma condenada, virgem de treze primaveras, por nome Inês, entrou, toda ela serenidade e confiança, ao fogaréu da pira. Estendeu as mãos, bendizendo a Cristo, que a sabia livrar das máculas do demônio; e logo foram vistas as chamas afastar-se de Inês, rugindo e silvando para os carrascos que a tinham aceso. Quis Deus que prodígios de igual valia manifestassem, a milhares, a virtude do sacrifício de Jesus. Multiplicou-os, sem empecer aos seus mártires, e por misericórdia para com os algozes; e assim foi que por três longos séculos aprendeu o mundo a fazer o sinal da cruz.
(Louis Veuillot, em Vida de Jesus)

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

233ª Nota - São Vicente de Paulo e os pobres


“Não se deve julgar um camponês pobre ou uma senhora de condição humilde por sua aparência ou pela envergadura de sua inteligência. Muitas vezes não têm absolutamente nenhum ‘rosto’, muito menos o aspecto de homens que pensam. São pessoas rudes e apegadas à terra. Se, porém, virarmos a face da moeda, constataremos então que, à luz da fé, o Filho de Deus, que quis ser pobre, vem ao nosso encontro nas pessoas desses pobres. Também Ele, em sua paixão, tinha um rosto desfigurado. Para os gentios, não passava de um louco; para os judeus, era pedra de escândalo. Teve, no entanto, a capacidade de se tornar o evangelizador dos pobres: Fui enviado para pregar o Evangelho aos pobres! Ó meu Deus, devemos encarar os pobres com simpatia e amorosamente, se os vemos na ótica de Deus e com o respeito que Jesus Cristo tinha por eles! Eles só se nos afiguram desprezíveis se os considerarmos pelas suas aparências físicas e num espírito ditado pelas normas profanas”.

(Fragmento de uma palestra de São Vicente de Paulo com padres missionários)