quinta-feira, 19 de maio de 2016

192ª Nota - A Vida de Jesus no país e no povo de Israel




“Eu me vou embora; então me haveis de procurar! Mas haveis de morrer nos vossos pecados!” (Jo 8, 21-59).

Em parte alguma a expressão ‘tiroteio de palavras’ é tão bem empregada com nas disputas entre orientais. Já a palavra ‘tiroteio’ é muito expressiva neste sentido, porque começam estas contendas, ora contra qualquer previsão, ora depois de uma reflexão devidamente premeditada, e porque, em casos dados, uma disputa dessas, principiadas como que casualmente, vai tomando proporções de um combate decisivo. Estas disputas não são entrevistas em que se procede de determinado plano e em que se vão aduzindo argumentos um por um, até formar uma série concatenada. Logo de entrada a linguagem se inflama nos sentimentos agitados e é encaminhada por eles. Uma objeção segue à outra, sem que se pense em solvê-las; um revide segue o outro; novas investidas, baseando-se em pontos semelhantes, dão azo a observações intermediárias.

Enganar-se-ia, todavia, quem pensasse que o modo de ver de ambas as partes desta forma não se fosse esclarecendo. Ao contrário: – no fogo destas disputas surgem, no meio da mais viva altercação de investidas e revides, como lampejos, as mais incisivas expressões.

Semelhante contenda, que terminou num combate decisivo, originou-se na festa dos Tabernáculos entre Jesus e os fariseus.

‘Abraão – nosso pai Abraão – filhos de Abraão – povo de Abraão!’ Estas palavras sempre de novo ocorriam nos discursos dos fariseus. Deus prometera a Abraão fazê-lo pai de um grande povo e abençoar por ele a todos os povos. Orgulhavam-se nesta promessa, já não pensando propriamente no Deus que tudo lhes dava, mas em si mesmos que, como descendentes de Abraão, podiam como que exigir dele que a cumprisse. Chegavam até à opinião, como diz São Justino, de que Deus não podia sequer repudiar um descendente de Abraão.

Começam como que casualmente. Jesus declara-lhes que o tempo do arrependimento e conversão já estava quase a terminar. Se não aceitassem o verdadeiro Messias, de nada lhes adiantaria crer num falso Messias. ‘Eu me aparto de vós; então me haveis de procurar! Mas haveis de morrer nos vossos pecados! Para onde eu vou, não me podeis seguir!’

Dizem entre si: ‘Acaso ele quer tirar a si mesmo a vida, dizendo: Para onde eu vou, vós não me podeis seguir?’ 

Forçosamente devia tratar-se de uma morte em pecado, de um suicídio; pois, para o céu, eles, os eleitos, por certo o poderiam seguir!

Jesus retorque-lhes abertamente: dá-se exatamente o contrário. Eles é que são pecadores! ‘Vós procedeis de baixo, eu procedo do alto! Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo! Por isso é que eu vos disse que haveis de morrer nos vossos pecados. Se não crerdes que eu o sou, haveis de morrer nos vossos pecados!’

‘Quem eu o sou!’ Compreendem que Jesus, por estas palavras, se propõe como o Filho de Deus; daí eles se precipitam a esta expressão: ‘Mas quem és tu?’

‘Para que é que eu ainda vos estou a ensinar? Quanto a vós, ainda, é certo, muito vos teria que dizer e que julgar. Mas aquele que me enviou é verdadeiro e o que eu dele ouvi, anuncio no mundo. Quando exaltardes o Filho do Homem, então haveis de compreender que eu o sou e que nada faço de mim mesmo, mas que anuncio unicamente aquilo em que o Pai me instruiu. Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixa sozinho, porque eu faço sempre o que ele quer!’

Muitos nunca compreenderam a ideia diretriz de sua volta ao Pai do Céu, ou a perderam de vista. Outros, porém, creem nele quando ele lhes fala em tom profético de sua morte.

Dirige-se Jesus aos de boa vontade e promete-lhes: ‘Se permanecerdes na minha doutrina, sereis realmente meus discípulos. Haveis então de reconhecer a verdade e a verdade vos há de libertar!’

Os adversários novamente se agitam. O que lhes falava Jesus, como se eles houvessem sido escravos, escravos da idolatria? Não possuíam eles acaso a verdadeira fé? Acaso entre eles, como entre os gregos e romanos, adoravam-se ídolos?

‘Nós somos descendentes de Abraão, nunca fomos escravos! Como é que podes dizer: Haveis de conseguir a liberdade?’

Jesus retorque-lhes às palavras, como outras tantas setas: ‘Em verdade, eu vos digo: todo aquele que comete um pecado é um escravo do pecado. Mas o escravo não fica para sempre em casa; só o filho é que aí fica para sempre. Mas, se o Filho vos dá a liberdade, sereis realmente livres!’

O nome de Abraão, que eles pronunciam, assemelha-se à explosão da raiva acumulada. Jesus objeta: ‘Eu bem sei que sois descendentes de Abraão. Entretanto vós vos estais esforçando por matar-me, porque a minha palavra não é recebida no vosso interior. O que eu vi ao lado de meu Pai, eu anuncio. Vós, pelo contrário, fazeis o que tendes ouvido do vosso pai.’

Na excitação em que estavam, não compreenderam a misteriosa distinção:  – Jesus tem um Pai, que pode ver e ouvir; eles, porém, têm um pai, que apenas podem ouvir. Sobre excitados, dizem consigo mesmo: Que está ele aí a falar de um Pai além de Abraão? E eles se obstinam em afirmar: ‘Nosso pai é Abraão!’

Jesus responde: ‘Se sois filhos de Abraão, então fazei também as obras de Abraão! Agora, porém, procurais matar-me a mim que só vos anuncio a verdade, que recebi de meu Pai; tal coisa Abraão não fez! Vós estais a pôr em prática as obras de vosso pai!’

Jesus ainda não cita o nome do ‘pai deles’. Estão excitados: Quererá ele acaso afirmar que eles não servem ao Deus verdadeiro?

‘Nós não somos filhos da infidelidade? Deus é nosso único Pai!”

Conforme uma tradição, os sacerdotes, durante a caminhada para o portal da água, exclamavam: ‘Javé é nosso pai; para Javé nossos olhos estão dirigidos!’ A resposta dos judeus adapta-se evidentemente a esta exclamação: é bastante substituir-se a palavra Javé, que não podia ser pronunciada, por Deus. Jesus cita expressamente a frase, ao responder-lhes: ‘Se Deus fosse vosso Pai, haveríeis de dedicar-me amor; pois eu procedo de Deus e dele venho. Não venho eu, pois, do que me é próprio, mas ele foi que me enviou! Por que não penetrais naquilo que vos anuncio? Por que não podeis suportar as minhas palavras? Tendes o demônio por pai e esforçai-vos por cumprir os desejos do vosso pai. Assassino tem sido ele desde o começo – ao assassínio ele vos instiga! – e ele não subsistiu na verdade, porque a verdade não está com ele; sempre que ele mente, revela-se a si mesmo, porque é um mentiroso e o pai da mentira. A mim, entretanto, não acreditais, porque eu vos ensino a verdade.’

Instando seriamente, Jesus os convida ainda uma vez a livrar-se do sedutor. Eles, porém, interpretavam as palavras como ofensas pessoais. A sua raiva explodia em exclamações e gestos de indignação. Terá sido contra estas observações que Jesus se dirige, continuando a falar: ‘Quem de vós pode convencer-me de um pecado? E se vos anuncio a verdade, por que então não me acreditais? Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus. É por isso mesmo que não atendeis a elas, porque não sois de Deus.’

Como tantos golpes certeiros, estas frases foram saindo dos lábios de Jesus. Nunca ele falara tão abertamente, sabendo que agora chegara o momento decisivo.

Eles lhes atiraram em face: ‘Não temos nós razão? És um samaritano e um possesso de espírito maligno!’

Um samaritano! Um homem sem sentimento algum de nacionalidade! Mestiços são piores do que pessoas inteiramente estranhas! Possesso de espírito maligno! Como poderia um homem, em pleno gozo de sua inteligência, designá-los a eles, os piedosos, com filhos do demônio?

Da palavra ‘samaritano’ Jesus não se importa. No mais limita-se a repetir o que já dissera e mostra que de nada o podem acusar, mesmo que suas palavras a respeito deles pareçam duras e a seu próprio respeito tenham a aparência de arrogantes.

‘Eu não sou possesso de um espírito maligno; eu apenas defendo a honra de meu Pai, enquanto vós me desonrais. Mas eu não procuro a minha própria honra; há alguém que vigia a meu respeito e julga.’ Ainda uma vez ele os quer atrair com a promessa da vida eterna; volta, pois, aos primeiros pensamentos que haviam dado ensejo a toda a questão.

‘Em verdade, em verdade eu vos digo: Quem segue a minha palavra, eternamente não há de ver a morte.’

Pensam poder vencê-lo desta vez: ‘Agora é claro que estás possesso de um espírito maligno! Abraão morreu e também os profetas, e tu dizes: Quem atende à minha palavra, eternamente não experimentará a morte. Acaso estás acima do nosso pai Abraão, que teve de morrer? E os profetas também morreram. Que fazes de ti mesmo?’

Com a comparação entre Jesus e Abraão, entre a sua vida e a vida de Abraão, eles tocaram o âmago do coração de Jesus. Desculpando-se de antemão, antes do que iria dizer, Jesus os adverte: ‘Se eu mesmo me gloriasse, a minha glória não teria valor. Mas meu pai é que me glorifica, o mesmo Pai que chamais de vosso Deus; mas vós o não conheceis de todo, ao passo que eu o conheço! Se eu afirmasse que não o conheço, seria um mentiroso como vós. Mas eu o conheço, seria um mentiroso como vós. Mas eu o conheço e atendo às suas palavras.’

Jesus começa de novo; eles prestam a maior atenção. 

‘Abraão, vosso pai, exultou para poder ver o meu dia; ele o viu realmente e alegrou-se.’

Em tom de caçoada eles objetam: ‘Ainda não tens cinquenta anos e pretendes ter visto Abraão!’

Falam-lhe de um  modo como se ele próprio, com as suas palavras, se tivesse aniquilado. 

Ergue-se então Jesus. Parece operar-se nele uma transformação, uma revelação do seu interior. Ele fala com solenidade: ‘Em verdade, em verdade eu vos digo: Antes que Abraão existisse, eu existo.'

Declara-se Jesus como sendo eterno e participante da natureza divina!

Deve-se ou crer nele ou tratá-lo como um blasfemador! – No pátio interior do templo havia muitas pedras, pois que nunca cessavam as construções aqui e ali. Cheios de indignação, eles se curvam para apanhá-las. Jesus, porém, evade-se – a hora da sua morte ainda não havia chegado, embora os assassinos já estivessem prontos.

Ao lermos este discurso, parece-nos longo e cheio de repetições. Na realidade, as frases e respostas vão se seguindo umas às outras rapidamente, entrelaçando-se como rodas dentadas e tocando-se em voz alta e com forte acentuação. Exteriormente Jesus se mostrou arrebatado pela troca de palavras, defendendo-se de cada investida com um novo golpe e uma nova revelação, até que a resposta à sua última frase já não foram palavras, mas pedras.

(Franz Michel Willan)