terça-feira, 31 de maio de 2016

198ª Nota - Objeções ou Sofismas de certos tradicionalistas

Francisco Bergoglio recebendo as "bênçãos" dos hereges protestantes



OBJEÇÃO: São Libério somente é considerado santo para os cismáticos ortodoxos, não o é no hagiológio católico.
RESPOSTA: São Libério se encontra no hagiológio ortodoxo antes da declaração do cisma. Aliás, muitos autores católicos o reconheceram como santo: Papa São Sirício o vê como um dos mais ilustres antecessores; São Basílio o chama bem-aventurado; Santo Epifânio: pontífice de feliz memória; Cassiodoro: o grande Libério, o santíssimo bispo, que sobrepassa todos os outros em mérito, e um dos mais célebres; Teodoreto: o ilustre e vitorioso atleta da verdade; Zózimo: homem ilustre em qualquer aspecto que o considere; Lúcio Dexter: São Libério; Santo Ambrósio: santo, santíssimo bispo.

OBJEÇÃO: Vocês defendem Libério, mas contradizem a sua postura ao aceitar o retorno dos bispos e o batismo dos arianos, que sendo hereges, segundo sua teoria, perderam o cargo. Vocês se parecem mais com os luciferinos de Lúcifer de Cagliari, que negavam toda jurisdição episcopal e até o batismo dos hereges arianos.
RESPOSTA: Igreja reconheceu o batismo dos hereges e a sua permanência na ordem sacerdotal. A jurisdição se perde ao cair em heresia, porém a sua recuperação está nas mãos do Papa, que neste caso os readmitiu.

OBJEÇÃO: Vocês criam fábulas ao afirmar que os Papas são impecáveis e que nunca se equivocam.
RESPOSTA: É você quem está criando fábulas contra nós. Nós não cremos que os Papas sejam impecáveis e que nunca se equivocam. O Papa pode ser pecador e resistir à graça. Um verdadeiro Papa pode cometer todos os pecados, ainda os mais graves, como também pode condenar-se e ir para o inferno. Entretanto, os Papas são infalíveis somente quando ensinam à Igreja, e, além disso, em matéria de fé e de costumes. Não podem cair em heresias e erros contra a fé, graças à assistência divina que os impede. Fora disto, podem se equivocar, e de fato se equivocam muitas vezes.

OBJEÇÃO: Nosso Senhor Jesus Cristo disse a São Pedro: "Aparta-te de mim, Satanás", e São Pedro o negou três vezes.
RESPOSTA: O primado foi conferido a São Pedro depois da Ressurreição, e sua plenitude, após Pentecostes. Portanto, quando caiu, São Pedro ainda não era Papa.

OBJEÇÃO: São Pedro foi corrigido por São Paulo.
RESPOSTA: Certo. Mas não porque caiu em heresia, e sim porque se mostrou débil e com respeito humano. Assim, Tertuliano (século III) afirmou que São Pedro cometeu um erro de procedimento e não de doutrina; São Jerônimo, em carta dirigida a Santo Agostinho, diz: “Ele (São Pedro) se retirava e se separava, temendo a reprovação dos circuncisos. Temia que os judeus, dos quais era o apóstolo, se afastassem da fé em Cristo, por causa dos gentios. Como imitador do Bom Pastor, temia perder o rebanho, confiado aos seus cuidados”; São João Crisóstomo: “São Pedro atuou assim por caridade, e não por desvio de fé. Ele não ousava dizer clara e abertamente aos seus discípulos que era necessário aboli-la (a tradição mosaica) inteiramente. Temia que se assim o fizesse, destruiria ao mesmo tempo a fé em Cristo, pois o espírito dos judeus há muito tempo estava imbuído dos preconceitos de sua lei, e não estavam preparados para entender tais conselhos. Por isso, São Pedro deixava-os seguir as tradições mosaicas; Santo Tomás de Aquino: “Agiu assim por temor daqueles que vinham dos circuncisos (Gálatas, 2, 12), a saber, os judeus, e não por um temor humano ou mundano, senão por um temor inspirado pela caridade, para que não se escandalizassem. São Pedro agia como judeu entre judeus, fingindo pensar como eles, que eram débeis. Contudo, seu temor era oposto à ordem, pois não se deve jamais abandonar a verdade por temor de escândalo” (Comentário sobre as Epístolas de São Paulo).

OBJEÇÃO: A infalibilidade somente se encontra no magistério ex-cathedra, conforme estabelecido pelo Concílio Vaticano I.
RESPOSTA: Você interpreta mal a palavra “somente”, porque isso não foi dito pelo Concílio Vaticano I. Neste se definiu que o Papa é infalível em seu ensinamento obrigatório. Além deste, o Papa é infalível em seu ensinamento ordinário e universal, como o são também os bispos quando unidos ao Papa.
O Catecismo Maior de São Pio X (1905), que não foi firmado, mas tão somente permitido por São Pio X, acrescentou ao cânon da Pastor Aeternus a palavra soltanto (italiano) = somente no número 198 (200). E por isto foi proibido pelo Papa, e corrigido no Catecismo da Doutrina Cristã (1912), que foi publicado junto com uma carta de aprovação firmada pelo próprio São Pio X. No número 116, lê-se que o Papa é infalível sempre que ensina como Pastor e Mestre em questões de fé e costumes.

OBJEÇÃO: Vocês, sedevacantistas, fazem uma extensão absurda desta infalibilidade, como os modernistas.
RESPOSTA: Errado, pois isto não é uma extensão absurda; é o que sempre acreditou e ensinou a Igreja. Ademais, está muito clara esta extensão na Constituição Pastor Aeternus do Concílio Vaticano I. Nesta, como em outras citações, fala-se da “fé nunca deficiente dos sucessores de Pedro”.
Por outra parte, você afirma que isto é o que creem os modernistas. Nada mais falso. Os modernistas não creem na infalibilidade dos papas. Na verdade, negam e renegam todo o magistério da Igreja, que eles chamam preconciliar. 

segunda-feira, 30 de maio de 2016

197ª Nota - Reflexão para os céticos ou resposta aos indecisos (III)



Nosso Senhor Jesus Cristo pôs como cabeça da Igreja um chefe supremo, ao qual todos os cristãos fossem submetidos e obedientes.
Pois bem.
A unidade da Igreja, enquanto reunião de fiéis, requer necessariamente a unidade de fé, e enquanto sociedade divinamente constituída, requer por direito divino a unidade de governo, que produz e compreende a unidade de comunhão. “A unidade da Igreja deve ser considerada sob dois aspectos: primeiro, o da conexão mútua dos membros da Igreja ou a comunhão que existe entre eles; segundo, o da ordem, que liga todos os membros da Igreja a um só chefe” (Santo Tomás de Aquino).

Perguntamos: onde estão as características próprias da unidade da verdadeira Igreja, a saber, unidade de fé, unidade de governo e unidade de comunhão, na atual igreja conciliar, comandada por Francisco Bergoglio? A igreja conciliar pode ser chamada e considerada a Igreja de Cristo quando lhe falta uma ou todas destas notas de unidade?

quarta-feira, 25 de maio de 2016

196ª Nota - Reflexão para os céticos ou resposta aos indecisos (II)



Perguntas que não querem calar: Se Nosso Senhor Jesus Cristo pôs como cabeça da Igreja um chefe supremo, o Papa, e quis que os cristãos se submetessem a Ele e a Ele prestassem obediência, por que razão algumas sociedades tradicionalistas e afins não se submetem nem prestam obediência a Francisco Bergoglio, já que o consideram Papa, o doce Cristo na Terra? Se responderem que não devem nem podem prestar obediência e submissão a Francisco Bergoglio, quando este quer que eles façam ou aceitem o erro ou a heresia, que significado e valor têm as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando declara, de maneira que não admite contestação, que rezou por São Pedro (e por conseguinte para todos os sucessores deste) para que a sua fé nunca desfalecesse?
Assim sendo, por que não admitir o sedevacantismo, como outrora o admitiu dom Antônio de Castro Mayer, tão lembrado e elogiado por eles mesmos? 

terça-feira, 24 de maio de 2016

195ª Nota - Reflexão para os céticos ou resposta aos indecisos ( I )



 “A Igreja é o edifício de Cristo, que sabiamente edificou sua casa sobre pedra, e, portanto, não pode estar submetida às portas do inferno; estas podem prevalecer contra quem se encontra fora da pedra, fora da Igreja, porém são impotentes contra esta (Orígenes, Comentários sobre o Evangelho de São Mateus).”
“Se Deus confiou a sua Igreja a São Pedro, foi com o fim de que esse apoio invisível a conserve sempre em toda a sua integridade (Leão XIII, in Satis Cognitum).”
Pois bem.
Pelo exame atento da história, verifica-se e constata-se que as portas do inferno prevaleceram e continuam a prevalecer contra a igreja conciliar (que se define pelo Novus Ordo Missae, pelo ecumenismo indiferentista e pela laicização de toda a sociedade) desde João XXIII até Francisco.
Logo, esta igreja conciliar não tem nem teve jamais o apoio invisível para conservá-la sempre íntegra, e os seus papas nunca foram verdadeiros papas, pois se encontraram fora da pedra, fora da Igreja. 

segunda-feira, 23 de maio de 2016

194ª Nota - Integridade do Depósito da Fé



É, pois, incontestável, depois do que acabamos de dizer [que a unidade está em conformidade com a fé (N.B.)], que Jesus Cristo instituiu na Igreja um magistério vivo, autêntico e, além disso, perpétuo, investido de sua própria autoridade, revestido do espírito da verdade, confirmado por milagres, e quis, e mui severamente o ordenou, que os ensinamentos doutrinais desse magistério fossem recebidos como propriamente seus. Todas as vezes, portanto, que esse magistério declarar que esta ou aquela verdade forma parte do conjunto da doutrina divinamente revelada, cada um deve crer com certeza que isso é verdade; pois se em certo modo pudesse ser falso, se seguiria disso, o qual é evidentemente absurdo, que Deus mesmo seria o autor do erro dos homens. “Senhor, se estamos no erro, Vós mesmo nos haveis enganado” (Ricardo de São Vítor). Afastado, pois, todo motivo de dúvida, pode ser permitido a alguém rechaçar alguma dessas verdades sem precipitar-se abertamente na heresia, sem separar-se da Igreja e sem repudiar em conjunto toda a doutrina cristã?
(Excerto da Carta Encíclica Satis Cognitum, de Leão XIII)
(Nota do Blogue: Este texto basta para confirmar a impossibilidade de acreditarmos nos ‘papas’ conciliares e em seu Concílio Vaticano II, pois a aceitação destes, leva-nos a afirmar que a Igreja é passível de ensinar ou promover o erro e a heresia)

sexta-feira, 20 de maio de 2016

193ª Nota - São José morreu de amor



Não se pode justificar facilmente que a morte de São José fosse posterior à de Jesus. Antes, todas as probabilidades, e mormente a recomendação do Salvador a S. João, mostrando-lhe a sua divina Mãe, reforçam a opinião de que ele já não existia. E como poderia admitir-se que o dileto Filho do seu coração, o seu querido Menino, lhe não assistisse à hora da morte? “Bem-aventurados os que usam de misericórdia, porque também eles obterão misericórdia” (Mat., V, 7).

Ah! quantos cuidados, quanto amor e misericórdia não dispensou este Pai adotivo ao Salvador, desde que este veio ao mundo, débil criancinha! E poder-se-á conceber que ao deixar este mundo o seu divino Filho lhe não retribuísse, em centuplicado, tais afetos, prodigalizando-lhe todas as suavidades celestes?

As cegonhas são a mais fiel imagem do mútuo amor entre pais e filhos; porque, sendo aves de arribação, transportam nas asas os pais e mães decrépitas, assim como por eles eram transportadas, em pequeninas nas suas viagens periódicas.

Durante a infância do Salvador, o grande S. José, seu pai adotivo, e a gloriosa Virgem Maria, sua Mãe, conduziram-no muitas vezes, e especialmente naquela viagem que fizeram da Judeia para o Egito e do Egito para a Judeia. Quem duvidará, pois, de que este pai tão desvelado, chegando ao termo da existência, seria igualmente conduzido, ao passar deste mundo para o outro, pelo seu divino Filho, para o seio de Abraão, para dali o transportar ao seu, na glória, no dia da sua maravilhosa Ascensão?

Um Santo que tanto amou em vida não podia morrer senão de amor; porque, não podendo sua alma amar o seu querido Jesus, até à saciedade entre as distrações desta vida, e tendo terminado a tarefa de que fora incumbido na infância do Homem-Deus, que lhe restava senão dizer ao Pai Eterno: “Ó Pai, concluída é a missão de que me encarregastes” (Jo. XVII, 4), e depois ao Filho: Ó meu Filho, assim como o Pai celeste entregou o vosso corpo nas minhas mãos, no dia em que viestes ao mundo, assim hoje, que me separo desta vida, “entrego o meu espírito nas vossas mãos” (Sal. XXX, 6; Luc. XXIII, 46).

É assim que eu imagino ter sido a morte do eminente Patriarca, escolhido para desempenhar a mais tenra, a mais afetuosa e nobre missão, que jamais foi nem será desempenhada junto do Filho de Deus, depois da que exerceu sua celeste Esposa, verdadeira Mãe natural deste divino Filho.

Nota do blogue:  O grande chanceler de Paris, Gerson, acrescenta que Jesus preparou para a sepultura o corpo virginal de seu Pai adotivo, cruzou-lhe as mãos ao peito e o abençoou, para que não se corrompesse no sepulcro. 

(São Francisco de Sales, em seu Tratado do Amor de Deus)

quinta-feira, 19 de maio de 2016

192ª Nota - A Vida de Jesus no país e no povo de Israel




“Eu me vou embora; então me haveis de procurar! Mas haveis de morrer nos vossos pecados!” (Jo 8, 21-59).

Em parte alguma a expressão ‘tiroteio de palavras’ é tão bem empregada com nas disputas entre orientais. Já a palavra ‘tiroteio’ é muito expressiva neste sentido, porque começam estas contendas, ora contra qualquer previsão, ora depois de uma reflexão devidamente premeditada, e porque, em casos dados, uma disputa dessas, principiadas como que casualmente, vai tomando proporções de um combate decisivo. Estas disputas não são entrevistas em que se procede de determinado plano e em que se vão aduzindo argumentos um por um, até formar uma série concatenada. Logo de entrada a linguagem se inflama nos sentimentos agitados e é encaminhada por eles. Uma objeção segue à outra, sem que se pense em solvê-las; um revide segue o outro; novas investidas, baseando-se em pontos semelhantes, dão azo a observações intermediárias.

Enganar-se-ia, todavia, quem pensasse que o modo de ver de ambas as partes desta forma não se fosse esclarecendo. Ao contrário: – no fogo destas disputas surgem, no meio da mais viva altercação de investidas e revides, como lampejos, as mais incisivas expressões.

Semelhante contenda, que terminou num combate decisivo, originou-se na festa dos Tabernáculos entre Jesus e os fariseus.

‘Abraão – nosso pai Abraão – filhos de Abraão – povo de Abraão!’ Estas palavras sempre de novo ocorriam nos discursos dos fariseus. Deus prometera a Abraão fazê-lo pai de um grande povo e abençoar por ele a todos os povos. Orgulhavam-se nesta promessa, já não pensando propriamente no Deus que tudo lhes dava, mas em si mesmos que, como descendentes de Abraão, podiam como que exigir dele que a cumprisse. Chegavam até à opinião, como diz São Justino, de que Deus não podia sequer repudiar um descendente de Abraão.

Começam como que casualmente. Jesus declara-lhes que o tempo do arrependimento e conversão já estava quase a terminar. Se não aceitassem o verdadeiro Messias, de nada lhes adiantaria crer num falso Messias. ‘Eu me aparto de vós; então me haveis de procurar! Mas haveis de morrer nos vossos pecados! Para onde eu vou, não me podeis seguir!’

Dizem entre si: ‘Acaso ele quer tirar a si mesmo a vida, dizendo: Para onde eu vou, vós não me podeis seguir?’ 

Forçosamente devia tratar-se de uma morte em pecado, de um suicídio; pois, para o céu, eles, os eleitos, por certo o poderiam seguir!

Jesus retorque-lhes abertamente: dá-se exatamente o contrário. Eles é que são pecadores! ‘Vós procedeis de baixo, eu procedo do alto! Vós sois deste mundo, eu não sou deste mundo! Por isso é que eu vos disse que haveis de morrer nos vossos pecados. Se não crerdes que eu o sou, haveis de morrer nos vossos pecados!’

‘Quem eu o sou!’ Compreendem que Jesus, por estas palavras, se propõe como o Filho de Deus; daí eles se precipitam a esta expressão: ‘Mas quem és tu?’

‘Para que é que eu ainda vos estou a ensinar? Quanto a vós, ainda, é certo, muito vos teria que dizer e que julgar. Mas aquele que me enviou é verdadeiro e o que eu dele ouvi, anuncio no mundo. Quando exaltardes o Filho do Homem, então haveis de compreender que eu o sou e que nada faço de mim mesmo, mas que anuncio unicamente aquilo em que o Pai me instruiu. Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixa sozinho, porque eu faço sempre o que ele quer!’

Muitos nunca compreenderam a ideia diretriz de sua volta ao Pai do Céu, ou a perderam de vista. Outros, porém, creem nele quando ele lhes fala em tom profético de sua morte.

Dirige-se Jesus aos de boa vontade e promete-lhes: ‘Se permanecerdes na minha doutrina, sereis realmente meus discípulos. Haveis então de reconhecer a verdade e a verdade vos há de libertar!’

Os adversários novamente se agitam. O que lhes falava Jesus, como se eles houvessem sido escravos, escravos da idolatria? Não possuíam eles acaso a verdadeira fé? Acaso entre eles, como entre os gregos e romanos, adoravam-se ídolos?

‘Nós somos descendentes de Abraão, nunca fomos escravos! Como é que podes dizer: Haveis de conseguir a liberdade?’

Jesus retorque-lhes às palavras, como outras tantas setas: ‘Em verdade, eu vos digo: todo aquele que comete um pecado é um escravo do pecado. Mas o escravo não fica para sempre em casa; só o filho é que aí fica para sempre. Mas, se o Filho vos dá a liberdade, sereis realmente livres!’

O nome de Abraão, que eles pronunciam, assemelha-se à explosão da raiva acumulada. Jesus objeta: ‘Eu bem sei que sois descendentes de Abraão. Entretanto vós vos estais esforçando por matar-me, porque a minha palavra não é recebida no vosso interior. O que eu vi ao lado de meu Pai, eu anuncio. Vós, pelo contrário, fazeis o que tendes ouvido do vosso pai.’

Na excitação em que estavam, não compreenderam a misteriosa distinção:  – Jesus tem um Pai, que pode ver e ouvir; eles, porém, têm um pai, que apenas podem ouvir. Sobre excitados, dizem consigo mesmo: Que está ele aí a falar de um Pai além de Abraão? E eles se obstinam em afirmar: ‘Nosso pai é Abraão!’

Jesus responde: ‘Se sois filhos de Abraão, então fazei também as obras de Abraão! Agora, porém, procurais matar-me a mim que só vos anuncio a verdade, que recebi de meu Pai; tal coisa Abraão não fez! Vós estais a pôr em prática as obras de vosso pai!’

Jesus ainda não cita o nome do ‘pai deles’. Estão excitados: Quererá ele acaso afirmar que eles não servem ao Deus verdadeiro?

‘Nós não somos filhos da infidelidade? Deus é nosso único Pai!”

Conforme uma tradição, os sacerdotes, durante a caminhada para o portal da água, exclamavam: ‘Javé é nosso pai; para Javé nossos olhos estão dirigidos!’ A resposta dos judeus adapta-se evidentemente a esta exclamação: é bastante substituir-se a palavra Javé, que não podia ser pronunciada, por Deus. Jesus cita expressamente a frase, ao responder-lhes: ‘Se Deus fosse vosso Pai, haveríeis de dedicar-me amor; pois eu procedo de Deus e dele venho. Não venho eu, pois, do que me é próprio, mas ele foi que me enviou! Por que não penetrais naquilo que vos anuncio? Por que não podeis suportar as minhas palavras? Tendes o demônio por pai e esforçai-vos por cumprir os desejos do vosso pai. Assassino tem sido ele desde o começo – ao assassínio ele vos instiga! – e ele não subsistiu na verdade, porque a verdade não está com ele; sempre que ele mente, revela-se a si mesmo, porque é um mentiroso e o pai da mentira. A mim, entretanto, não acreditais, porque eu vos ensino a verdade.’

Instando seriamente, Jesus os convida ainda uma vez a livrar-se do sedutor. Eles, porém, interpretavam as palavras como ofensas pessoais. A sua raiva explodia em exclamações e gestos de indignação. Terá sido contra estas observações que Jesus se dirige, continuando a falar: ‘Quem de vós pode convencer-me de um pecado? E se vos anuncio a verdade, por que então não me acreditais? Quem é de Deus, ouve as palavras de Deus. É por isso mesmo que não atendeis a elas, porque não sois de Deus.’

Como tantos golpes certeiros, estas frases foram saindo dos lábios de Jesus. Nunca ele falara tão abertamente, sabendo que agora chegara o momento decisivo.

Eles lhes atiraram em face: ‘Não temos nós razão? És um samaritano e um possesso de espírito maligno!’

Um samaritano! Um homem sem sentimento algum de nacionalidade! Mestiços são piores do que pessoas inteiramente estranhas! Possesso de espírito maligno! Como poderia um homem, em pleno gozo de sua inteligência, designá-los a eles, os piedosos, com filhos do demônio?

Da palavra ‘samaritano’ Jesus não se importa. No mais limita-se a repetir o que já dissera e mostra que de nada o podem acusar, mesmo que suas palavras a respeito deles pareçam duras e a seu próprio respeito tenham a aparência de arrogantes.

‘Eu não sou possesso de um espírito maligno; eu apenas defendo a honra de meu Pai, enquanto vós me desonrais. Mas eu não procuro a minha própria honra; há alguém que vigia a meu respeito e julga.’ Ainda uma vez ele os quer atrair com a promessa da vida eterna; volta, pois, aos primeiros pensamentos que haviam dado ensejo a toda a questão.

‘Em verdade, em verdade eu vos digo: Quem segue a minha palavra, eternamente não há de ver a morte.’

Pensam poder vencê-lo desta vez: ‘Agora é claro que estás possesso de um espírito maligno! Abraão morreu e também os profetas, e tu dizes: Quem atende à minha palavra, eternamente não experimentará a morte. Acaso estás acima do nosso pai Abraão, que teve de morrer? E os profetas também morreram. Que fazes de ti mesmo?’

Com a comparação entre Jesus e Abraão, entre a sua vida e a vida de Abraão, eles tocaram o âmago do coração de Jesus. Desculpando-se de antemão, antes do que iria dizer, Jesus os adverte: ‘Se eu mesmo me gloriasse, a minha glória não teria valor. Mas meu pai é que me glorifica, o mesmo Pai que chamais de vosso Deus; mas vós o não conheceis de todo, ao passo que eu o conheço! Se eu afirmasse que não o conheço, seria um mentiroso como vós. Mas eu o conheço, seria um mentiroso como vós. Mas eu o conheço e atendo às suas palavras.’

Jesus começa de novo; eles prestam a maior atenção. 

‘Abraão, vosso pai, exultou para poder ver o meu dia; ele o viu realmente e alegrou-se.’

Em tom de caçoada eles objetam: ‘Ainda não tens cinquenta anos e pretendes ter visto Abraão!’

Falam-lhe de um  modo como se ele próprio, com as suas palavras, se tivesse aniquilado. 

Ergue-se então Jesus. Parece operar-se nele uma transformação, uma revelação do seu interior. Ele fala com solenidade: ‘Em verdade, em verdade eu vos digo: Antes que Abraão existisse, eu existo.'

Declara-se Jesus como sendo eterno e participante da natureza divina!

Deve-se ou crer nele ou tratá-lo como um blasfemador! – No pátio interior do templo havia muitas pedras, pois que nunca cessavam as construções aqui e ali. Cheios de indignação, eles se curvam para apanhá-las. Jesus, porém, evade-se – a hora da sua morte ainda não havia chegado, embora os assassinos já estivessem prontos.

Ao lermos este discurso, parece-nos longo e cheio de repetições. Na realidade, as frases e respostas vão se seguindo umas às outras rapidamente, entrelaçando-se como rodas dentadas e tocando-se em voz alta e com forte acentuação. Exteriormente Jesus se mostrou arrebatado pela troca de palavras, defendendo-se de cada investida com um novo golpe e uma nova revelação, até que a resposta à sua última frase já não foram palavras, mas pedras.

(Franz Michel Willan)

quarta-feira, 18 de maio de 2016

191ª Nota - Vamos à palavra de dom Sanborn ( II )



O bispo W. afirma corretamente: “O que os bispos do mundo ensinam, em união com o Papa, é o Magistério Universal Ordinário da Igreja, que é infalível.” Ele propõe então o argumento dos sedevacantistas de que, dado que o Vaticano II tem sido promulgado pelos “papas” e “bispos” do Vaticano II, é impossível que eles sejam verdadeiros Papas e bispos. O bispo W. responde a isto dizendo que o Magistério Ordinário Universal do Vaticano II e anos subsequentes não esteve de acordo com a Tradição. Logo, não é magistério ordinário universal. Logo, o argumento dos sedevacantistas é falso.

Resposta. A noção que o bispo W. tem do Magistério Ordinário Universal (a ordem usual das palavras; doravante: MOU) é falsa. Vem de uma teoria que era comumente propagada em Ecône quando lá estive, de que um ensinamento não qualificava como MOU se não estivesse em conformidade com a Tradição. Logo, nessa visão, é possível que o Romano Pontífice junto do inteiro corpo dos bispos ensine uma doutrina à Igreja inteira que, de fato, seja herética. Uma afirmação dessas é que é herética!

Em parte alguma, a ideia econiana de fazer a triagem do MOU pode ser encontrada nos livros-texto de teologia dogmática ou no ensinamento da Igreja Católica. A definição de MOU dada pelo Pe. Reginald-Maria Schultes O.P., escrevendo em 1931, é a seguinte: “O magistério ordinário e universal é exercido quando a Igreja prega a doutrina revelada, ensina-a em suas escolas, publica-a através dos bispos, e a atesta e explica através dos Padres da Igreja e dos teólogos.” [1. Schultes, Reginald-Maria, De Ecclesia Catholica Prælectiones Apologeticæ (Paris: Lethielleux, 1931), p. 355.] Todos os teólogos católicos concordam nesta definição.

O Pe. Sylvester Berry escreve:

“A autoridade docente ordinária dos bispos é aquela que eles exercem ao ensinarem os fiéis de suas respectivas dioceses mediante cartas pastorais, sermões proferidos por eles próprios ou por outros aprovados para esse fim, e mediante catecismos ou outros livros de instrução publicados e aprovados por eles. Quando os bispos da Igreja, empenhados desse modo no dever de instruir seu povo, são praticamente unânimes em proclamar uma doutrina de fé ou costumes, diz-se que eles exercem a autoridade docente universal, e são então infalíveis quanto a esta doutrina. Noutras palavras, uma doutrina de fé ou moral na qual praticamente todos os bispos da Igreja concordem é infalivelmente verdadeira. A fé da Igreja discente deve corresponder à fé proposta pelos bispos que constituem o corpo docente na Igreja. Logo, se os bispos como um corpo não fossem infalíveis, a Igreja toda poderia ser induzida em erro a qualquer momento, e destarte cessar de ser a Igreja de Cristo, a coluna e o fundamento da verdade.” [2. Berry, Sylvester, D.D., The Church of Christ (Saint Louis: B. Herder, 1927), pp. 466-467.]

Para provar ainda mais o que estou dizendo, chamo vossa atenção para o livro-texto de teologia dogmática escrito pelo Pe. Francis Diekamp em 1917, intitulado Theologiæ Dogmaticæ Manuale. Ele afirma:

“Os bispos individuais exercem o supramencionado magistério ordinário na sua instrução religiosa ordinária ou em instruções desse tipo que ocorram por ordem sua e sob sua vigilância, e em juízos publicados pelos Soberanos Pontífices e dados por escrito, em Sínodos sejam provinciais ou diocesanos, na condenação de erros feita em cartas pastorais, na publicação de catecismos ou livros de devoção que são distribuídos à diocese toda, etc.

Os livros litúrgicos prescritos pelos bispos e especialmente pelos Romanos Pontífices são de grande importância em argumentos tocantes ao dogma. As leis, ritos e orações neles contidas dão testemunho da fé dos pastores e dos fiéis. Do consenso, com que todas as igrejas ocidentais e orientais concordam na fé, advém obrigação de prestar o assentimento de fé. O Papa Celestino I [422-432] ensinou isto: “Olhemos também para os mistérios sagrados das orações dos sacerdotes, que foram transmitidas desde os Apóstolos e são uniformemente celebradas no mundo todo e em todas as igrejas católicas, a fim de que a lei da oração fixe a lei da crença.” (Epist. 21, 11)

A doutrina dos bispos considerados conjuntamente, exatamente como a definição ex cathedra do Romano Pontífice, não é tornada infalível pelo assentimento que a Igreja discente dá a ela; pelo contrário, é infalível por si mesma em razão da assistência divina, pela qual é preservada de erro.”

A doutrina exposta por esses autores, bem como a descrição do MOU, estão em conformidade com a de todos os teólogos católicos. Ultrapassa o escopo deste artigo aduzir todas as provas.

A noção de MOU do bispo W., por outro lado, não pode ser encontrada no livro de nenhum teólogo católico, nem no magistério da Igreja. A ideia de MOU do bispo W. exige que o ensinamento universal da Igreja seja analisado e adjudicado pelos fiéis quanto à sua conformidade com a Tradição. Num tal cenário, é inteiramente possível que a hierarquia ensine heresia num dado ponto qualquer, mas que a infalibilidade e indefectibilidade da Igreja sejam preservadas pela própria rejeição desse magistério, com base em os fiéis não o encontrarem conforme à Tradição. Isso é tão absurdo como dizer: “a Igreja Católica é infalível exceto quando erra.” Ademais, o sistema dele requer que os fiéis formem o juízo de se aceitam ou não aceitam o magistério ordinário universal, baseados numa convicção pessoal de que ele está em conformidade com a Tradição ou não está. Noutras palavras, os fiéis devem peneirar o ensinamento da Igreja universal, toda vez que ela se pronuncia, a fim de distinguir a verdade do erro. Como já disse, uma tal noção de magistério despoja o Papa e a Hierarquia de sua autoridade e a desloca para o indivíduo, já que ele tem a última palavra quanto a se a doutrina está ou não está conforme à Tradição.

O que o bispo W. diz sobre a Tradição também poderia ser atribuído à Escritura. E se eu pensar que algum ato do magistério da Igreja não é compatível com a Sagrada Escritura? Tenho então o direito de rejeitá-lo, ao mesmo tempo que considerando o papa negador da Escritura como verdadeiro Vigário de Cristo?

A arrepiante realidade é que as ideias do bispo W. estão em exata conformidade com aquilo que o herege arquimodernista Hans Küng disse em seu livro de 1970 intitulado Infalível? Uma Interpelação. Nele, Küng diz que a infalibilidade da Igreja não está atrelada a fórmulas dogmáticas, as quais, diz ele, na realidade podem estar erradas, mas sim ao comprometimento global e duradouro da Igreja com a verdade. Küng afirma:

“A infalibilidade, a inenganabilidade nesse sentido radical, significa, portanto, uma permanência fundamental da Igreja na verdade, que não é anulada por erros individuais.” [3. Küng, Hans, Infallibility? An Inquiry (Garden City, New York: Doubleday, 1971), pág. 181.]

“Mas ser verdadeira, por parte da Igreja, não depende absolutamente de proposições infalíveis bem definidas, mas em permanecer ela na verdade através de todas as — mesmo errôneas — proposições.” [4. Ibid., pág. 182.]

Ele cita Yves Congar, outro arquimodernista no Concílio:

“Uma ou outra parte da Igreja pode errar, até mesmo os bispos, até mesmo o papa; a Igreja pode ser chacoalhada pelas tempestades: no fim, ela permanece fiel.” [5. Citado em ibid., pág. 183.]

E a seguinte afirmação de Küng se assemelha bem de perto à posição do bispo W.:

“Onde, então, nesses tempos sombrios, a indefectibilidade da Igreja foi realmente manifestada? Não na hierarquia nem na teologia, mas entre aqueles inumeráveis e em sua maioria desconhecidos cristãos — e sempre houve alguns bispos e teólogos no meio deles — que, mesmo nos piores períodos da Igreja, ouviram a mensagem cristã e tentaram viver de acordo com ela na fé, no amor e na esperança.” [6. Ibid., pág. 189.]

“Foram eles as verdadeiras testemunhas da verdade de Cristo…” [7. Ibid.]

Küng cita os cismáticos orientais, a fim de provar sua tese:

Os patriarcas cismáticos escreveram a Pio IX em 1848: “Entre nós, nem Patriarcas nem Concílios jamais lograram introduzir novos ensinamentos, pois o guardião da religião é o próprio corpo da Igreja, ou seja o próprio povo (laos).” [8. Apud ibid., pág. 200.]

Küng cita o teólogo russo cismático Alexei Khomiakov, que diz:

“A constância invariante e verdade inerrante do dogma cristão não depende de nenhuma ordem hierárquica; ela é guardada pela totalidade, pelo inteiro povo da Igreja, que é o Corpo de Cristo.” [9. Apud ibid., página 201.]

Nos Trinta e Nove Artigos anglicanos, lê-se: “Assim como as Igrejas de Jerusalém, de Alexandria e de Antioquia erraram; assim também a Igreja de Roma errou, não somente em sua conduta e forma cerimonial, mas também em questões de fé.”

O bispo W. não consegue escapar do acordo com esses hereges protestantes, pois mantendo ele que a hierarquia modernista é a hierarquia católica, ele não tem como fugir da conclusão de que “a Igreja de Roma errou”. Em contrapartida, o sedevacantista mantém que os falsos ensinamentos e práticas do Vaticano II não vêm da Igreja de Roma, mas de um grupo de mafiosos eclesiásticos, hereges, que estão simulando ser a hierarquia católica. O dever do católico nesta crise é desmascarar esses impostores, e denunciá-los como falsos hierarcas.

É verdade que devemos comparar todas as coisas, ditas por quem quer que seja, com o ensinamento tradicional da Igreja. De igual maneira, comparamos com os primeiros princípios da razão tudo aquilo que ouvimos, e imediatamente rejeitamos o que for contraditório. Num caso como o nosso, em que vimos a aparente hierarquia católica ensinar falsa doutrina e promulgar falso culto e leis pecaminosas, é necessário concluir que eles não são verdadeiros papa e bispos, dado que é impossível que verdadeiros papa e bispos, tomados como um todo, façam uma coisa dessas. A defecção do Vaticano II com relação à verdade, e seu ensinamento de heresia à Igreja universal, são sinal infalível de que Paulo VI não era verdadeiro papa, e nunca foi um verdadeiro papa. Pois toda a autoridade de qualquer concílio geral depende do Papa.

A doutrina que acabo de expor está inteiramente concorde com a Sagrada Escritura, na qual São Paulo, em Gálatas I, 8-9, afirma: “Mas ainda que nós, ou um anjo do céu, vos pregue um evangelho além daquele que nós vos pregamos, seja anátema. Como eu já disse, digo novamente agora: Se alguém vos pregar um evangelho, além daquele que vós recebestes, seja anátema.” Note-se que ele não os manda peneirar o docente de falsidades à cata de migalhas de boa doutrina, mas pelo contrário, manda que eles o rejeitem por completo. Seja anátema. Esta doutrina está em conformidade também com a bula do Papa Paulo IV Cum ex Apostolatus de 1559, que convoca à completa rejeição de um Romano Pontífice que se descubra ser herege, e não à triagem da doutrina dele.

Resumindo minha resposta: O magistério ordinário universal, que é o ensinamento referente à fé e à moral de todos os bispos espalhados pelo mundo inteiro, junto do Romano Pontífice, é infalível. Esta doutrina foi definida no Concílio Vaticano de 1870, e está no Código de Direito Canônico de 1917. Logo, é herético até mesmo pôr em dúvida aquilo que é ensinado pelo magistério ordinário universal. Se o que aparenta ser o magistério ordinário universal contradiz o ensinamento da Igreja, então a conclusão necessária é que isso não pode ter vindo da verdadeira hierarquia da Igreja Católica, pois eles são assistidos por Cristo a não cometerem erros a esse respeito. É contrário à constituição da Igreja rejeitar o magistério ordinário universal como falso, ao mesmo tempo que aceitando a hierarquia que o promulga como sendo a verdadeira hierarquia Católico-Romana. A noção de magistério ordinário universal do bispo W. é falsa, e extremamente perigosa, pois leva o católico a crer que a inteira Igreja docente, o Romano Pontífice com todos os bispos, seja capaz de ensinar erro em matérias que são da alçada da fé. Portanto, os princípios do bispo W. concernentes ao magistério ordinário universal não podem ser usados contra os argumentos em prol do sedevacantismo, já que os princípios dele são falsos.

terça-feira, 17 de maio de 2016

190ª Nota - Vamos à palavra de dom Sanborn ( I )



O bispo W. cita o argumento dos sedevacantistas de que os “papas” do Vaticano II promulgaram falsas doutrinas, leis e culto. Assim fazendo, estes destroem a indefectibilidade da Igreja, se forem verdadeiros papas. Para rebater esse argumento, ele aduz o caso do Papa Libério (352-366), que – alega ele – assinou um formulário herético. Neste caso, diz ele, a indefectibilidade não operou através do papa, mas através de Santo Atanásio, que permaneceu ortodoxo. De igual maneira em nosso tempo, a indefectibilidade é assegurada através do Arcebispo Dom L. e daqueles que o seguem.

Resposta. Há três coisas a reparar aqui. O Papa Libério não assinou um formulário herético. Assinou, sim, um formulário ambíguo, dando a este interpretação ortodoxa. Mas ainda que se concedesse, em prol da argumentação, que ele tivesse assinado um formulário herético, é certo que o Papa Libério não ensinou essa doutrina à Igreja inteira. Ora, as falsas doutrinas do Vaticano II têm sido promulgadas para a Igreja toda pelos “papas” do Vaticano II e seus “bispos”. Esse fato representa uma diferença essencial entre o caso Libério e o dos “papas” do Vaticano II. Logo, a analogia é falsa.

A indefectibilidade não fica salva pela fidelidade de um bispo ou de alguns bispos aos quais os fiéis devam aferrar-se. A Igreja Católica é essencialmente hierárquica, e consequentemente não é possível separar os seus atos e os seus atributos, dos Papas e da hierarquia universal. O que eles fazem, ela faz. Se eles falham, ela falha. O dom da profecia no Antigo Testamento, que era a missão de ensinar infalivelmente a revelação de Deus para os judeus, foi transferido por Cristo no Novo Testamento à hierarquia católica. Logo, não pode haver nenhum “bispo-profeta” como o Arcebispo Dom L. que coe os ensinamentos da hierarquia católica, destarte tornando-se ele próprio a autoridade infalível. A infalibilidade e indefectibilidade da Igreja Católica tem de ser operada pelo Papa e bispos em união com ele. Ela não tem como ser garantida por um ou alguns bispos que estabeleçam a si próprios como corretores do Papa e do restante da hierarquia. Sustentar uma teoria dessas arruína a constituição divina da Igreja Católica. A essência do Catolicismo é estar dotado de uma hierarquia que tem poder de ensinar, governar e santificar em nome de Cristo e com a mesmíssima autoridade que Jesus Cristo. Se os fiéis, para descobrirem a verdade sobrenatural, precisam recorrer a bispos-profetas, denunciantes que se voltam contra esta hierarquia, a própria natureza e essência da Igreja Católica cai em ruína.

Noutras palavras, ninguém pode falar em nome de Deus acima ou à margem da hierarquia Católica-Romana.

O sistema do bispo W., de peneirar o magistério para determinar sua conformidade com a Tradição, subverte completamente a regra católica da fé, que é o magistério da Igreja Católica. O sistema dele é essencialmente o dos protestantes. Sustentam eles que cada indivíduo tem de decidir por si mesmo qual a verdadeira interpretação das Escrituras. O bispo W. está dizendo que cada católico precisa decidir por si mesmo o que ele considera estar em conformidade com a Tradição ou não estar. Uma tal regra da fé conduziria a exatamente o que o protestantismo é: um aglomerado de pessoas que não têm absolutamente nenhuma unidade de fé, que altercam infindavelmente acerca do que dizem as Escrituras, e que se fragmentaram numa miríade de facções dogmáticas.

Há muitos casos na história da Igreja Católica em que esse apelo ao mais alto tribunal da Tradição por sobre a cabeça do magistério levou a grave erro. Os donatistas tornaram-se cismáticos, por exemplo, porque pensaram que a Igreja estava errada em aceitar como válidos os sacramentos daqueles que tinham caído em apostasia durante a perseguição. Os gregos entraram em cisma no século onze porque diziam, entra outras coisas, que o uso de pão ázimo no rito romano não era tradicional, e portanto não era válido. Eles rejeitaram também o primado do Papa sob pretexto de que não fosse tradicional. Os vétero-católicos no século dezenove, igualmente, rejeitaram a infalibilidade papal alegando que ela não fosse tradicional. Mesmo os modernistas argumentam que a Igreja Católica transformou-se com o tempo em algo que não pode ser encontrado na Igreja primitiva, e que, portanto, não é tradicional. Toda a reforma litúrgica da década de 1960 foi baseada na noção falsa do arqueologismo, a saber: de que os períodos medieval e tridentino criaram uma liturgia que não estava em conformidade com a tradição primitiva. Os feeneyítas alegam que a doutrina católica do Batismo de Sangue e de Desejo não pode ser reconciliada com a Tradição, mas foi inventada no século dezenove.

A noção do bispo W. de peneirar a tradição, que é uma urdidura de Ecône, é um potencial vespeiro de heresia e cisma, e põe o católico tradicional nas piores companhias.
(Texto extraído do blogue Acies Ordinata) 

segunda-feira, 16 de maio de 2016

189ª Nota - A doutrina da reencarnação é uma pura fantasia destituída de toda prova



Apesar de não ser aceita de bom grado por todos os espíritas, contudo a doutrina da reencarnação é uma das mais frequentes entre eles, principalmente entre os franceses, e conseguintemente entre os espanhóis e os da América Latina, que mais ou menos se inspiraram sempre nos dogmas do Espiritismo francês e aprenderam as doutrinas deste nas obras de Allan Kardec. Este se declara partidário decidido da reencarnação, a qual é por ele proposta como um dogma revelado pelos espíritos. Como se fossem necessárias revelações para se vir ao conhecimento de uma doutrina que, antes de o Espiritismo aparecer no mundo, já fora professada por povos em massa, principalmente antes do aparecimento do Cristianismo! Mas, embora esta doutrina não seja original, nem exclusiva e característica do Espiritismo, nem seja professada por todos os espíritas, não parece tarefa inútil dedicarmos ao estudo dela o presente Capítulo e o seguinte, demonstrando ser ela uma doutrina não somente arbitrária, por carecer de toda espécie de provas, como também contrária à razão e, em si mesma, absurda.

A doutrina da reencarnação não se demonstra.

E, antes de tudo, quais são os argumentos em que se apóia a crença nessa peregrinação contínua, ou ao menos muito prolongada, das almas através de muitos corpos? Desse tornar a submergir-se em organismos materiais depois de os haver abandonado por força da morte? De qualquer maneira que seja proposta, esta asserção é tão estupenda e tão exorbitante, e toca-nos tão de perto, que temos direito a que nos digam quais as razões em que ela se apóia; razões que, aliás, deveriam ser não já meras conjecturas, porém argumentos apodícticos, aos quais nada pudesse racionalmente resistir.

Não obstante, quem folhear as revistas e os folhetos de propaganda da seita ou das seitas que expõem como certas semelhantes fantasias, encontrará, sim, muitas afirmações, lerá a asserção frequente de que tal espírito se reencarnou em tal lugar, que tal indivíduo em outra existência foi tal outro, e quejandas, as quais servem maravilhosamente para excitar as fantasias exaltadas e o interesse mórbido de mentalidade que ofereceriam magnífica ocasião para ser estudadas pelos psiquiatras e alienistas; porém argumentos de razão, fatos bem comprovados, nem sequer provavelmente comprovados, isto não é possível descobrir em nenhuma parte.

Faltam argumentos experimentais.

E a primeira coisa que falta é a demonstração experimental, que temos o direito de exigir, dados os alardes de ciência por parte do Espiritismo, e frequentes e contínuos como seriam os fatos se fossem verdadeiros. Porque, se fosse verdadeira a doutrina da reencarnação, todos os seres humanos que atualmente vivem na terra, todos os que nela viveram desde que no mundo existe a doutrina reencarnacionista, seriam espíritos reencarnados. E, entre tantos seres reencarnados, será possível não haja muitas mais provas da reencarnação do que os casos afirmados pelos espíritas? Mas, afinal de contas, se ao menos se tivesse podido demonstrar esses poucos casos aduzidos pelos espíritas, menos mal; mas, infelizmente para eles, não há sequer um só que tenha sido cientificamente comprovado. Porquanto esta comprovação ter-se-ia feito ou pelo testemunho dos pretendidos espíritos que se comunicam pela intervenção dos médiuns e por meio dos quais viríamos ao conhecimento do fato da reencarnação, como pretende tê-lo sabido Allan Kardec; ou pelo testemunho de homens deste mundo que nos assegurariam já ter vivido antes com outros corpos, como também nos diriam as circunstâncias de suas passadas existências. Não parece haja outro caminho para vir ao conhecimento do fato da reencarnação, dado que ele seja real.

Não se prova pela experiência dos mortos.

Pois bem: pelo que se refere ao primeiro desses pontos, o leitor já sabe o caso que deve fazer das pretensas comunicações dos espíritos através dos médiuns. Porque, de um lado, estes testemunhos são entre si contraditórios com relação não só aos pormenores como também à realidade da reencarnação, como acabamos de expor no Capítulo anterior; e, de outro lado, para que eles tivessem algum valor seria mister soubéssemos de quem são, isto é, seria mister que a chamada “identificação espírita” fosse um fato cientificamente comprovado, coisa que, como demonstramos nos Capítulos XXV, XXVI e XXVII deste livro, ela não foi até o presente, nem leva caminho de o ser jamais.

Nem se prova pela existência dos vivos.

Porém muito menos pode provar-se experimentalmente por meio do testemunho dos homens atualmente viventes. Porque, se perguntardes a qualquer homem, mesmo espírita, que experiência ele tem daquilo que ele foi em existências anteriores, e quais foram essas existências e as vicissitudes por que ele passou, se for sincero, se não estiver louco, necessariamente ele vos dirá que o ignora por completo. Ninguém tem a menor experiência daquilo que foi em outra existência. Como há de, pois, ser possível formular um argumento experimental à base do testemunho de nenhum dos seres viventes neste mundo? Não se nos oculta não faltar que, mentindo descaradamente, ou alucinado pela sua imaginação impregnada das fantasias das doutrinas espíritas, pretenda recordar-se de alguma coisa do que foi nas suas existências passadas. Porém estes testemunhos sem provas quaisquer, sem fatos com que os controlar, que podem valer perante qualquer homem de bom-senso que não tenha perdido todo o senso crítico? Tanto assim é que até os próprios espíritas exigem, ao menos de palavra, algum gênero de prova; mas não se sabe que jamais a tenham conseguido. Porque, ou elas são em si mesmas completamente impossíveis, como acontece em não poucos casos; ou então, no caso de serem possíveis, não foram levadas a efeito com o menor senso crítico, ou então deram resultados inteiramente contraproducentes, e bastantes, por si mesmos, para desacreditar todo intento de demonstração. Consideradas em si mesmas, essas provas são inteiramente impossíveis quando aquele que afirma ter vivido em outra existência diz haver sido nela um personagem, vulgar ou importante, mas desconhecido pela história; porque neste caso, por hipótese, faltam documentos para a comprovação do testemunho. Tal seria, por exemplo, o caso de quem dissesse, como o dizia Hipólito Denizart-Rivail, que noutra existência fora um sacerdote drúida chamado Allan Kardec; ou o de quem pretendesse, por exemplo, ter sido ama de leite de um sultão de Túnis que viveu na Idade Média, ou palafreneiro de Alexandre Magno. E, nos casos em que essa comprovação resultasse, de algum modo possível, por se tratar de personagens históricos, como são aqueles casos em que a pessoa afirma ter sido em outra existência Napoleão, Carlos Magno, Aristóteles, de fato já sabemos os resultados que deram semelhantes comprovações, que não têm mais garantias do que as pretendidas “identificações espíritas”. Porquanto, nestes casos, como ficou demonstrado nos Capítulos antes citados, aquele que afirma tamanha baboseira dá como provas somente os conhecimentos que pode adquirir, na existência atual, do personagem pretérito; conhecimentos  que quase sempre são aduzidos com tanta imprecisão e vagueza, e com tantos anacronismos e impropriedades, que não há ninguém  que possa tomar a sério semelhantes intentos de demonstração. O fracasso destes evidencia-se no fato de que, apesar de se haverem reencarnado tantos sábios pretéritos, tantos homens ilustres que intervieram ativamente em acontecimentos do seu tempo que são enigmas para a história, tantos artistas e tantos sábios que levaram  consigo para o túmulo o segredo dos seus inventos e processos para a obtenção de resultados que agora nos seria sumamente útil conhecer, apesar disso não tenha havido um só caso que esses personagens que se dizem reencarnados tenham revelado à humanidade presente o que tanto se deseja saber e que tão útil seria averiguar.

Dir-se-á que isso se explica perfeitamente pelo fato de, ao se reencarnarem, perderem os espíritos absolutamente a lembrança dos conhecimentos que tiveram em suas existências passadas. Que eles não os têm é muito verdade; mas não o é que os hajam perdido, porque não se perde aquilo que se não teve; e é isto precisamente o que antes de tudo se trata de provar, e não se prova, a saber: que eles os tiveram em outra existência.

Mui significativa é esta falta de memória daquilo que lhes teria acontecido em anteriores existências. À base dela havemos de formular contra a reencarnação um argumento que não tem réplica. Mas antes vejamos se porventura, na ordem filosófica, a doutrina da reencarnação tem algumas razões em que se fundar, já que a sua argumentação experimental é tão pobre e insuficiente como acabamos de ver.

Intentos de demonstração filosófica da doutrina reencarnacionista.

Não há dúvida de que não só os espíritas, como também os reencarnacionistas em geral, pretendem aduzir razões em favor da sua doutrina, mas estas são em si mesmas tão fúteis que quase não valeria a pena mencioná-las. Há-as de ordem que poderíamos chamar moral, e há-as também de ordem física ou psicológica; e todas elas se reduzem à pretensão de que, para explicar certos fatos, seria preciso recorrer à hipótese da reencarnação. A insuficiência destas razões é claríssima para quem quer que discorra serenamente; porque nem comumente é verdade que na hipótese da reencarnação se encontre uma explicação dos fatos mencionados, a não ser dando de mão àquilo que sabemos com certeza pela ciência moral ou psicológica; e nem tampouco, mesmo que a hipótese reencarnacionista pudesse dar dos referidos fatos alguma explicação, seria este um título suficiente para impô-la logicamente, enquanto, além disso, não se demonstrar não existirem hipóteses melhores e mais coerentes com as doutrinas e fatos cientificamente demonstrados.

Argumentos filosóficos de ordem moral em favor da reencarnação.

Entre os argumentos que se aduzem de ordem moral, os principais são os que se fundam no fato evidentíssimo da desigual sorte que os homens têm neste mundo, pela desigual repartição de dotes e bens naturais; e no fato, não menos evidente, das diferenças que se observam na conduta moral deles, pois os há bons e perfeitos, e também os há criminosos, viciosos e perversos. O fato é certíssimo; mas que tem este fato a ver com a hipótese da reencarnação? Segundo os espíritas, muito teria a ver, porque, dada a hipótese da reencarnação, essas diferenças podem ser atribuídas aos méritos granjeados em existências anteriores, e assim cada um e em cada existência iria, com suas obras, construindo aquilo que ele haveria de ser depois da sua morte, numa nova vida corporal. De onde resultaria que o fato da desigual distribuição de bens de toda espécie, a qual de outra sorte deveria ser atribuída a Deus com menoscabo da sua justiça, explicar-se-ia perfeitamente pela ação da cada homem, que em cada existência lavraria a sua felicidade ou infelicidade para uma vida posterior. Eis aí, em substância e brevemente exposto, o argumento que os espíritas intentam formular, partindo do fato das diversidades existentes entre os homens quanto às suas qualidades tanto físicas como morais. A inconsistência deste argumento, e a sua falta de valor lógico, é evidente. Porquanto, dado que esta hipótese explique o fato das diversidades dos homens, acaso será esta a única hipótese capaz de explicá-los? Evidentemente que não, a não ser que se diga jamais ter existido outra filosofia que a dos que professam a doutrina da reencarnação, e que a Filosofia cristã é incapaz de explicar o fato mencionado. Porém a doutrina reencarnacionista não só não é a única hipótese, nem mesmo a melhor, como também é uma suposição absurda, e, portanto, incapaz de explicar o quer que seja. Com efeito, a primeira coisa que se necessita para a admissão de uma hipótese é não ser ela absurda. Que a hipótese em questão é absurda e impossível, demonstrá-lo-emos depois; aqui, contentemo-nos com fazer ver que, mesmo prescindindo de ser ela absurda, ela não é a única, nem sequer a mais satisfatória, como deveria sê-lo para que logicamente se impusesse ao filósofo.

A reencarnação não é a única hipótese para explicar o fato das diversidades dos homens.

Que, para explicar as diversidades que se notam entre os homens, não há necessidade nenhuma de recorrer à hipótese da reencarnação, ou, o que dá no mesmo, que esta explicação não é a única que de tais diversidades relativas às qualidades corporais e psicofisiológicas dos homens podem muito bem, e certamente com maior facilidade e de modo mais conforme com o que nos dizem as ciências biológicas modernas, explicar-se pela herança fisiológica; e as de ordem moral, consistentes na diversa conduta boa ou má, e nas virtudes ou vícios, explicam-se também de maneria mais natural e mais satisfatória pelo exercício do livre arbítrio de cada homem, que, por meio dele e unicamente por meio dele, é capaz de exercer domínio psicológico sobre as próprias atividades, e, portanto, de escolher entre o bem e o mal moral, de empreender uma vida virtuosa ou criminosa, contraindo a responsabilidade, o mérito ou o demérito, consequente às suas livres determinações. Nem se diga que desta doutrina, que é a da Filosofia cristã, se segue algo que seja, no mais mínimo, contrário à justiça e à bondade de Deus. Porque, sejam quais forem os seus bens e males físicos e as suas qualidades de ordem fisiológica ou psicológica, quer sejam excelentes, quer sejam minguadas, todo homem pode sempre e em qualquer caso chegar a alcançar a sua felicidade eterna para a qual foi por Deus criado. Deus quer seriamente levar todos os homens à suprema perfeição e felicidade; e, para esse fim, dá a todos e a cada um dos homens os meios e auxílios que eles necessitam para alcançá-la. E, conquanto, nos imperscrutáveis desígnios da sua providência santíssima, Ele não dê esses meios a todos em igual medida e abundância, ninguém pode com razão queixar-se dEle nem o ter por injusto; porque aquele que a todos dá suficientemente e, em qualquer caso, tudo quanto eles necessitam, e mais do que em justiça e pelos seus méritos podem eles exigir, nunca comete injustiça alguma dando mais a uns do que a outros. Se, pois, o homem incorre na maldade e se perde, só a si mesmo, e não a Deus, pode imputar a sua desgraça; e na sua mão está, com a graça de Deus e enquanto viver neste mundo, o pôr-se em bom caminho. Pois Deus respeita a liberdade do homem mesmo para o levar à suprema felicidade.

A hipótese da reencarnação não é, pois, a única a poder-se alegar para explicar a diversa maneira de ser dos homens sob o ponto de vista físico ou moral. Que essa também não é a melhor hipótese, isto se segue evidentemente dos argumentos com que, nos Capítulos XXXVIII e XXXIX, havemos de demonstrar a impossibilidade de o aperfeiçoamento da vida presente provir da conduta moral e segue-se também do que depois diremos diretamente contra a física que em favor dela propõem os reencarnacionistas. São, pois, ineficazes para provar a reencarnação os argumentos de ordem moral aduzidos.

Os argumentos filosóficos de ordem física em favor da reencarnação também são ineficazes.

Menos ineficazes, não são, porém, os argumentos que chamamos de ordem física ou psicológica. A estes podem reduzir-se os que os reencarnacionistas formulam quando recorrem à pretensa existência de ideias inatas, e quando aduzem os casos de precocidade psicológica que de vez em quando se observam nos chamados meninos-prodígios. No tocante ao primeiro destes argumentos, o fato em que ele pretende fundar-se não se demonstrou até agora; antes, demonstra-se com certeza que no homem não ocorrem de fato ideias inatas, seja lá o que for da questão da sua possibilidade, que não temos empenho nenhum em negar. A experiência quotidiana credencia, sim que no homem, já desde os seus tenros anos, existe uma ideia de Deus causa suprema, e a ideia de moralidade consequentemente à ideia de Deus. Mas é absurdo confundir a facilidade para a aquisição de certas ideias, com as próprias ideias; as quais, se facilmente surgem na alma da criança e do homem, nela jamais brotam senão partindo dos conhecimentos experimentais dos sentidos. Agora, tal como em tempos de Aristóteles, é uma verdade claramente demonstrada que nada há no entendimento que de algum modo não tenha entrado pelos sentidos, isto é, que não seja devido a uma elaboração intelectual feita sobre elementos de conhecimentos subministrados pela experiência sensível. Não vamos entrar aqui na demonstração desta tese, que o leitor pode ver exposta e provada em qualquer manual de Filosofia cristã; nem seria conveniente alongarmo-nos aqui mais sobre este ponto, que já expusemos suficientemente em outras publicações. Porque, mesmo dado, mas não concedido, que se verificassem ideias inatas, daí ainda não se seguiria que essas ideias houvessem diso adquiridas em outra existência; já que, por uma parte, e como dissemos anteriormente e como nisso insistiremos depois, em nenhum caso ocorre qualquer lembrança de semelhante aquisição; e, por parte, se ocorressem, poderiam as ideias inatas brotar da própria natureza do ser que as tem, mesmo que ele não tenha tido mais do que a existência atual.

Até aqui o tocante ao argumento que se pretende fundar nas supostas ideias inatas. Pois para quem parte da existência de meninos precoces, como parece terem-no sido, por exemplo, Pascal, Mozart, Rembrandt e tantos outros, por mais maravilhosos que pareçam estes casos de precocidade nada se encontra neles que não possa explicar-se também pela herança fisiológica, juntamente com uma educação acertada. Aduzir estes casos como um argumento em favor da preexistência das almas é coisa que só pode ocorrer a homens que não sabem nada de Psicologia.

Muitos foram já os filósofos escolásticos que admitiram que ao serem criadas por Deus, as almas são todas de uma mesma perfeição; e consequentemente, atribuíam as grandes diversidades de qualidades, talentos e aptidões naturais dos homens à constituição e maneira de ser do organismo que a alma informa e do qual há de ele servir-se como instrumento para se aperfeiçoar na ordem intelectual. Pois, se isto já se admitia na Idade Média, que ignorância não supõe da Psicologia experimental e da Fisiologia modernas o intento de formular à base desses fatos um argumento em favor da preexistência e transmigração das almas?

Não é mister insistirmos mais sobre isto, pois a doutrina daqueles escolásticos sobre este ponto é coisa comumente admitida nos nossos dias por todos os homens de ciência, de vez que nenhum deles põe em dúvida que não só as diversas aptidões e a própria inteligência, mas também a maneira de ser de cada um, o seu caráter e fisionomia mental, dependem principalmente, senão totalmente, das propriedades do organismo, e principalmente dos seus sistemas nervosos e humoral, que todo homem recebe hereditariamente por via de geração.

Tais são as principais razões que se costuma aduzir em favor da doutrina da reencarnação em geral. Não cremos tenham elas por si sós a menor eficácia para convencer quem quer que seja de uma doutrina tão fantástica, mesmo que nada tivéssemos a alegar contra ela.

Mas, afortunadamente, são muitos, e muitos eficazes, os argumentos que contra esta doutrina podem ser formulados, mesmo prescindindo dos de ordem teológica, que, embora sejam de todo convincentes, nos propusemos não aduzir aqui, para circunscrever o nosso estudo à ciência positiva e filosófica puramente racional.


(Fragmento de METAPSÍQUICA E ESPIRITISMO, F. M. Palmés, S.J., Decano e Professor de Psicologia na Faculdade Filosófica da Companhia de Jesus em San Cugat del Vallés (Barcelona), Diretor Geral de “Balmesiana”, Codiretor de “Pensamento”, 1957)